por Ladislau Dowbor

Economista e professor da PUC-SP

Sábado, 26 de maio de 2018

Economista e professor da PUC-SP

Em economia sabemos o que funciona. Há interesses divergentes, sem dúvida, e cada grupo de interesses irá criar a teoria que lhe convém, mas o que funciona para o conjunto é claro. Tomemos por exemplo a crise de 1929 nos Estados Unidos. Crise profunda que afetou igualmente as finanças públicas, e se proclamava na época que todos precisariam fazer economias para enfrentar a 'fase difícil'. Roosevelt, a partir de 1933, inverteu a visão de conjunto: criou impostos duros sobre os mais ricos, emitiu moeda, generalizou o apoio aos milhares de municípios espalhados pelo país para fazerem investimentos e ampliarem políticas sociais. O inverso da austeridade. 
O resultado foi que as pessoas na base da sociedade voltaram a ter uma vida mais digna, coisa de imensa importância para as famílias – e afinal das contas é para isso que queremos uma economia que funcione. O dinheiro que estava na mão dos mais ricos eles reservavam pois ninguém vai investir quando não há consumo nem perspectivas de lucro. Mas na base da sociedade não se faz aplicação financeira, se consome. E o consumo, ao ampliar a demanda, gera dinamização das empresas existentes, que voltam a produzir. E voltam também a empregar, o que aumenta ainda mais o consumo. Rapidamente, a base produtiva da economia, consumidores e produtores – contrariamente aos donos das grandes fortunas – volta a funcionar. O consumo gera impostos sobre o consumo, e a atividade empresarial volta a pagar impostos sobre a produção. Ambos geram mais receita para o Estado, que cobre assim com sobras o que investiu na dinamização econômica. Pôs-se em marcha o círculo virtuoso em que consumo, produção e investimento público se sustentam um ao outro. A fórmula é essa. 
Inflação? O governo emitiu moeda, concedeu empréstimos a juros baixos, isso não geraria inflação? Naturalmente não, pois as empresas produtoras e os comerciantes estavam com armazéns abarrotados de produtos não vendidos, e havia oferta de sobra para equilibrar a nova demanda. O essencial para nós é entender que é do funcionamento equilibrado do tripé – consumo, produção empresarial e investimento público (infraestruturas e políticas sociais) que resulta uma economia que se desenvolve. O desenvolvimento funciona quando a economia é orientada diretamente para o seu objetivo final, que é o bem-estar das famílias. 
O bem-estar das famílias repousa em grande medida na renda monetária, no dinheiro que entra no bolso. Não que não seja essencial: abaixo de certo limite as famílias entram em desespero e temos situações que nenhuma sociedade civilizada deve tolerar, e acima de certo limite, caso dos bilionários por exemplo, como não há como consumirem o que ganham, a riqueza se transforma em poder político e rentismo financeiro, deformando todo o sistema. A extrema pobreza, como a extrema riqueza, são patológicas em termos econômicos, sociais e políticos. 
Mas o bem-estar das famílias repousa igualmente no chamado salário indireto, que é assegurado através do Estado. Para dar um exemplo, no Canadá os salários podem ser mais baixos do que nos Estados Unidos, mas o canadense tem acesso gratuito universal à saúde, educação, infraestruturas esportivas, piscinas públicas – ou seja, precisa gastar muito menos –  pois o essencial que toda sociedade deve garantir a todos está assegurado, por meio do acesso ao consumo de bens e serviços coletivos. 
Curiosamente, nos Estados Unidos o custo da saúde atinge em média 7400 dólares por pessoa e por ano, enquanto no Canadá é menos da metade. No Canadá se investe em saúde, em particular saneamento básico, controle de agrotóxicos, boa alimentação nas escolas e semelhantes, com forte foco em saúde preventiva, enquanto nos EUA se gasta essencialmente na indústria da doença, a saúde “out of pocket”, paga diretamente do bolso do cliente. No Canadá tenta-se reduzir o número de doentes, nos EUA se busca aumentar o número de clientes. Gastando menos da metade, o Canadá tem níveis de saúde da população muito superiores. E o que não é secundário, há muito menos sofrimento, e muito menos angústia de se encontrar de repente sem recursos para assegurar o atendimento de um filho doente. O sentimento de paz também é um produto muito importante. Mas o essencial aqui é que fornecer serviços públicos universais é simplesmente mais eficiente. 
O New Deal norte-americano é um exemplo de pacto econômico e social que se tornou proveitoso para todos, inclusive para os ricos. Mas se tomarmos outro exemplo, o da Europa ocidental do pós-guerra, vimos funcionar basicamente o mesmo sistema, aqui chamado de Well-fare State, estado de bem-estar. Envolveu uma forte presença do Estado para reconstruir o que a guerra tinha destruído, e uma política generalizada de aumento dos salários à medida que aumentava a produtividade. E envolveu também a generalização do acesso gratuito e universal aos bens de consumo coletivo, como saúde, educação, cultura, segurança e semelhantes, o que se chama internacionalmente de investimentos sociais, e no Brasil curiosamente se chama de 'gastos'. O mesmo tripé família/empresa/Estado funcionou de maneira impressionante, gerando uma prosperidade que incluiu a massa da população. As empresas, ao terem uma massa maior de consumidores, tiveram obviamente como expandir a produção e o emprego, e o conjunto produzia os impostos e consequentemente receitas do Estado para cobrir os investimentos sociais e os investimentos em infraestruturas.  
Muito interessante igualmente é o exemplo dos países nórdicos, a Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Islândia, que foram de certa maneira pioneiros de um capitalismo que poderíamos chamar de capitalismo civilizado. Com fortes organizações sociais, em particular a participação sindical, conseguiram equilibrar os interesses de maneira a assegurar a produtividade do conjunto. No seu excelente desenho de como funciona o modelo, Viking Economics, George Lakey mostra como o nível elevado de impostos e a forte regulação dos bancos permitiu que se assegurasse tanto os investimentos nas infraestruturas como as políticas sociais de acesso universal gratuito, o que por sua vez gerou economias de alta produtividade. Para as pessoas serem produtivas, é preciso investir nelas. 
Com a crise de 2008, recusaram as políticas de austeridade, optando pelo efeito multiplicador das políticas sociais: “O gasto do governo em saúde e educação tem um elevado efeito multiplicador, e, portanto, ajuda a economia a se recuperar da quebra e ainda salva vidas. ” Em particular, buscaram não economizar os seus recursos financeiros por meio da 'austeridade' e sim torná-los produtivos: “A Dinamarca, Suécia e Noruega encontraram maior facilidade para se reequilibrar porque as suas democracias mais fortes asseguraram que os bancos sejam limpos, transparentes e confiáveis (accountable). Rejeitando a ideologia do livre mercado, haviam amplamente retornado ao que funciona. ”
As pessoas que não querem aceitar evidências buscam sempre desculpas. O caso dos EUA seria antigo, a Europa tem uma cultura diferente, os países nórdicos são pequenos e assim por diante. E naturalmente nunca, mas nunca, aceitam que os anos 2003 a 2013, que o Banco Mundial chamou the 'Golden Decade', década dourada do Brasil, constitua um exemplo semelhante de bom senso. Vamos então a exemplos mais recentes e países maiores. 
A China também é diferente, e dá certo. O equilíbrio que o país conseguiu construir entre as políticas públicas, o setor público empresarial, interesses empresariais privados e os grupos internacionais – é que em última instância assegurou o sucesso do conjunto. É uma arquitetura diferente de poder e de gestão, aparentemente muito mais equilibrada do que as nossas economias ditas “ocidentais”. Arthur Kroeber faz no seu China's Economy prova de um bom senso impressionante: “Em qualquer país os verdadeiros inimigos na luta por uma prosperidade de base ampla não são os competidores internacionais, mas elites domésticas que batalham constantemente para preservar os seus próprios privilégios às custas de todos os outros. Inovação, educação, abertura, e uma Estado redistributivo constituem armas confiáveis nesta batalha. ”
Nessa lista poderíamos acrescentar a Coréia do Sul que aliou desenvolvimento e redistribuição, mas também o Japão do pós-guerra, e igualmente a Polônia que segundo o Economist foi o país que melhor enfrentou a crise. A Polônia, aliás, enfileirou nos últimos tempos 16 anos de crescimento de 4% ao ano, apoiando-se em particular nos seus mais de 470 bancos cooperativos. Balcerowicz, um economista conservador, comenta com bom humor que a Polônia foi salva da crise “pelo nosso atraso”. Não tinha privatizado o sistema financeiro, aliás presentemente invadido pelos grupos transnacionais. 
Uma palavra sobre a Alemanha, que ajuda a entender a lógica do que funciona. A carga tributária do país é elevada, mais de 40% do PIB. Mas os recursos públicos são massivamente repassados para a base da sociedade, para os municípios, que é afinal onde moram as pessoas e se manifestam as diferentes necessidades. O sistema de acesso universal a bens públicos e gratuitos é fundamental, mas a gestão se dá de maneira muito descentralizada. As cidades se veem amplamente regadas com recursos públicos, contrariamente ao Brasil onde os municípios têm poder de decisão sobre menos de 15% dos recursos. Isso se refere aos recursos públicos, à política orçamentária. 
Mas há também as poupanças privadas. As famílias alemãs não colocam o seu dinheiro em bancos, e sim muito majoritariamente em caixas de poupança locais, chamadas de Sparrkassen. Isso permite que a imensa massa de poupança das famílias, em vez de fluir para sistemas especulativos através dos grandes bancos, sirva para financiar o desenvolvimento das próprias cidades onde se encontram. Assim, juntando a descentralização dos recursos orçamentários e a apropriação e uso local das poupanças privadas gera-se uma grande produtividade dos recursos financeiros. O dinheiro, nos seus diversos subsistemas – dinheiro dos impostos, dinheiro das poupanças privadas, e a renda direta das pessoas – passa a servir ao que as pessoas precisam, gerando ao mesmo tempo dinâmica econômica e equilíbrio social. E em termos políticos, assegura que haja uma coincidência entre a democracia política e a democracia econômica: as comunidades alemãs são donas do seu dinheiro.  
Não se diga o absurdo de que não sabemos o que funciona. O que funciona são políticas que se preocupam em responder às necessidades concretas das famílias. E diretamente, não através de misteriosas construções economicistas de que aumentar o dinheiro dos mais ricos é bom, pois eles vão investir, e, portanto, gerar empregos, e que em consequência dar dinheiro aos ricos é bom para os pobres. O que é bom para os pobres, e para o conjunto da sociedade, é dar dinheiro – sob as diversas formas – para os pobres. 
No nosso caso, o país ia bem obrigado, até 2013. Um sistema que funcionou bem durante 10 anos, gerando mais de 20 milhões de empregos formais, aumentando a expectativa de vida da população (entre 1991 e 2012) em 10 anos – o brasileiro tem 10 anos de vida a mais para se queixar de como era ruim – 16 milhões de pessoas passaram a ter acesso à eletricidade, a população universitária mais que dobrou, a frequência de jovens na escola média quase quadruplicou, o fundamental completo entre os 20% mais pobres passou de 11% para 37% (ainda uma tragédia) e assim por diante. Esses 10 anos não constituem vôo de galinha, funcionaram porque faz sentido, e pela mesma razão o modelo funcionou ou funciona em tantos outros países. Mas os ricos tendem a achar que o que funciona é o que funciona para os ricos, e tragicamente muitos pobres concordam. Do alto das suas fortunas é que gerariam generosamente o bem-estar dos pobres, com certo atraso, naturalmente. Inclusive criaram um conceito científico muito estudado entre economistas: trickling-down, gotejamento. 
As palavras têm poder mágico. Trockling down seria bom para os pobres, pois as gotas vão para baixo. Aliás evasão fiscal, mecanismo pelo qual o rico pode ter seu filho estudando de graça na USP com o imposto dos outros é chamado nos bancos de 'otimização fiscal'. A transformação das políticas sociais necessárias para a sociedade em juros pagos aos banqueiros é definida como política de 'austeridade', nome que dá uma impressão de severa, mas necessária seriedade. A rapina de bens públicos por grupos privados faria parte de uma política de 'desestatização', tirando um peso dos nossos ombros, quase um favor. A transferência de recursos públicos para bancos, nos Estados Unidos e na Europa, se chamou de 'quantitative easing', sendo que easing traz a simpática conotação de quem desperta o cinto depois de uma boa refeição. Os grandes grupos não desviam dinheiro, enfrentam 'problemas de liquidez”. As palavras são mágicas.  
Como se travou o que ia bem no Brasil? Simplesmente, o sistema financeiro, como ocorreu em outros países, aprendeu a se apropriar por meio de agiotagem dos recursos que iam sendo gerados na base da sociedade. Faça as contas:  em 2015 o governo transferiu para os bancos e outros atravessadores financeiros 500 bilhões de reais, equivalentes a 8,5% do PIB, recursos que deveriam ter servido para financiar infraestruturas e políticas sociais. Era dinheiro dos nossos impostos. Isso referente à dívida pública. Os juros sobre pessoas físicas e pessoas jurídicas renderam aos intermediários 15% do PIB. 
O mecanismo: muito simples, com apenas 5 bancos dominando o mercado, passaram a cobrar ao mês as taxas de juros que se cobra ao ano no resto do mundo. Hoje, todos conhecemos na pele o que é juro sobre juro. Estão 'negativados' (popularmente chamados com 'nome sujo na praça') 61 milhões de adultos. A capacidade de compra foi transformada em juros. É a mais nova e poderosa forma de exploração. E quando as famílias não compram, as empresas entram em crise e desempregam. Hoje, as empresas funcionam com apenas 67% da capacidade. Com a queda do consumo e da produção reduzem-se as receitas do Estado, e consequentemente as políticas sociais e investimentos públicos. Mas não, naturalmente, os juros pagos aos bancos. Este é exatamente o sistema que não funciona, e que já não funciona, no Brasil, desde o início de 2014. Estamos entrando em 2018 e ainda não consertaram? Pelo contrário, geraram a recessão. Hoje, temos um banqueiro no Banco Central e outro banqueiro no Ministério da Fazenda. Nos EUA, Trump nomeou o presidente (licenciado) do Goldman Sachs como chefe da sua equipe econômica. Just business.

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