por Antonio David Cattani

Professor titular de Sociologia da UFRGS

Quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Desde o início dos anos 1980, nos países economicamente avançados e, em especial, no Brasil, observa-se um fenômeno de extrema importância e gravidade.

Desde o início dos anos 1980, nos países economicamente avançados e, em especial, no Brasil, observa-se um fenômeno de extrema importância e gravidade: a concentração de renda em patamares sem precedentes. Em alguns casos, maiores daqueles existentes antes da grande crise de 1929. Com raras exceções (Alemanha, por exemplo), os multimilionários representando menos de 1% da população adulta, estão ampliando suas fortunas ao ponto de controlarem mais de 50% da riqueza substantiva, aquela permitindo dominar as atividades econômicas e exercer forte poder político e social. 

Com base em farto material estatístico cobrindo mais de um século, Thomas Piketty no livro O Capital no século XXI apresenta provas irrefutáveis deste processo, sintetizando sua essência numa frase: “grandes fortunas se recapitalizam mais rápido que o crescimento da produção e da renda”. Por exemplo, em determinado ano a renda total cresce 100, o 1% mais rico recebe 50 e os outros 50 são divididos entre os 99% restantes. No ano seguinte, os rendimentos totalizam 110. Os mais ricos recebem 58 e os demais 52. Assim, ano após ano, os multimilionários ampliam suas rendas e patrimônios aumentando as desigualdades socioeconômicas. Mesmo quando a produção não cresce, os mais ricos continuam se apropriando crescentemente do produto social. Ou seja, poucos ganham, muitos perdem, em especial os mais pobres e frações vulneráveis da “classe média”. Isso se deve ao fato dos multimilionários poderem materializar parte das suas fortunas (ficando imunes às perdas inflacionárias), realocar investimentos em países onde existem melhores oportunidades de negócios ou, ainda, obter vantagens específicas pelos efeitos de poder.

Para a maioria das pessoas, a atividade econômica é entendida como o que acontece na esfera das indústrias, grandes empresas de serviços, corporações etc. Esquecem que por trás das instituições ou da forma empresa existem indivíduos de carne e osso, com CPF, nome e endereço e, sobretudo, contas bancárias e investimentos particulares. Uma poderosa multinacional não é apenas uma abstração jurídica. Ela é propriedade de alguém, administrada pelos donos ou prepostos com salários estratosféricos. Ao fim e ao cabo, os resultados são parcialmente reinvestidos mas, também, creditados nas contas pessoais dessas pessoas. Contra a própria lei da acumulação se observam casos frequentes de transferências beneficiando indivíduos em detrimento da saúde financeira da empresa. Foi o caso do Royal Bank of Scotland, Lehman Brothers, Banco Fortis, grupo EBX. As empresas ficaram insolventes mas as fortunas dos seus proprietários ou administradores saíram incólumes. 

Privilégios e maiores rendas pessoais são justificadas com argumentos tão sagrados quanto os 10 mandamentos bíblicos. Nas tábuas da nova ordem estão inscritos as leis e os preceitos para o século XXI:

1. Amarás o Dinheiro acima de tudo. 
2. Considerarás o mercado perfeito e o Estado ineficiente.
3. Os ricos merecerão a fortuna, os pobres a miséria.
4. Aumenta a riqueza desmedidamente que migalhas sobrarão para os outros.
5. Faça caridade com recursos alheios.
6. Especula bastante que receberás mais do que mereces.
7. Usa os outros e a natureza para alcançar teus objetivos.
8. Se nada der certo põe a culpa do Estado.
9. Considera o egoísmo e a ganância sem limites como virtudes.
10. Não pensa, consome.

 

Essas ideias listadas aqui de forma satírica correspondem à ideologia dominante. Na grande mídia e nos manuais de economia elas são apresentadas de maneira pseudocientífica em termos de “trickle down effect”, meritocracia, eficiência dos mercados, escolha racional do indivíduo utilitarista, naturalizando situações e comportamentos que são apenas resultado de condicionamentos históricos e ideológicos. Cria-se uma aura de legitimidade de determinadas posições sociais; sacralizam-se certos indivíduos e comportamentos e demonizam-se outros.

A manipulação da opinião pública leva a maioria das pessoas a acreditar na existência de uma casta de indivíduos ascéticos, puritanos, administrando seus negócios segundo princípios de absoluta moralidade. Ao desvendar a origem de muitas fortunas observa-se o contrário. Uma luta ferrenha pela apropriação do excedente regida não por princípios angelicais ou por uma pretensa capacidade empreendedora mas pela lei do mais forte. É interessante observar que basta criticar as práticas obscuras e fraudulentas que explicam fortunas estratosféricas para ser taxado de ressentido e invejoso. Os ricos nem precisam se defender. Eles encontram em sujeitos de diferentes categorias sociais, mesmo entre os mais pobres, os ingênuos que acreditam que o lugar ocupado por cada um na complexa hierarquia social dependeu de esforço ou da falta dele.

A análise rigorosa das formas de acumulação de fortunas desmedidas demonstra a recorrência de práticas como: acumulação primitiva (expropriação de recursos alheios pela força), sonegação e outros ilícitos fiscais, utilização de paraísos fiscais, privilégios obtidos na esfera do Estado (isenções discricionárias, REFIS, repactuação de débitos fiscais com escalonamentos temporais que podem levar décadas), recebimento de bens públicos praticamente de graça (privatizações espúrias).  

Atualmente, existem incontáveis análises científicas provando que a riqueza desmedida não gera mais empregos e não favorece a inovação. Pelo contrário, reduz oportunidades de emprego e novos negócios inibindo a inovação e a concorrência salutar entre empresas. Desde sempre, monopólios foram nefastos para a economia. Mais grave ainda, as grandes fortunas estão hoje associadas ao descrédito da política, à corrupção de agentes públicos e à manipulação da opinião pública. Epicuro de Samos, o filósofo helenista (341 a 270 AC) sentenciava com propriedade:

“A riqueza sem limites de poucos é a miséria de muitos”. 

 

O livro Ricos, podres de ricos (Porto Alegre: Marcavisual/Tomo Editorial, 2017), aprofunda essas questões buscando responder:
- Porque as análises científicas sobre a desigualdade só se preocupam com os que ganham pouco e raramente estudam os multimilionários?
- Riqueza e pobreza são fenômenos separados ou existe uma dimensão relacional entre eles?
- Porque a posse da riqueza extrema é mitificada e mistificada?
- As grandes fortunas provêm da competência exercida em mercados livres ou do poder obtido graças ao capital concentrado? 
- Elas contribuem para o bem comum ou corrompem as normas morais da sociedade, fragilizam a economia e deturpam a democracia?
- É possível promover uma repartição mais justa da renda?

Ricos, podres de ricos (Porto Alegre: Marcavisual/Tomo Editorial, 2017).

Outros colunistas