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Segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Compreende-se por economia solidária o conjunto de atividades econômicas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, organizadas sob a forma de autogestão (Ecosol - Base Brasília).

As origens do que, no Brasil, chamamos economia solidária remontam ao início do século 18, na Europa, e um século depois, nos Estados Unidos. Sensibilizados com o custo humano da revolução industrial, representantes de praticamente todas as tendências políticas do período embarcaram nesta nova proposta, que criticava a ciência econômica por não integrar a dimensão social. Hoje, no Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, “existem milhares de iniciativas econômicas, no campo e na cidade, em que os trabalhadores estão organizados coletivamente”. São associações e grupos de produtores, cooperativas de agricultura familiar, cooperativas de coleta e reciclagem, empresas recuperadas assumidas pelos trabalhadores, redes de produção, comercialização e consumo, bancos comunitários, cooperativas de crédito, clubes de trocas, entre outras.

Incluindo organizações que encarnam a busca por uma terceira via entre o capitalismo e o centralismo de Estado, os empreendimentos solidários aparecem, na história, sob o impulso das grandes crises econômicas. Foi nesta perspectiva que o Fórum Social das Resistências, realizado em Porto Alegre, entre 17 e 21 de janeiro, promoveu o painel “Velhos e novos sistemas de resistência econômica – Economia Solidária e Comercialização”. Histórico defensor do associativismo, o economista Paul Singer participou do debate, defendendo a economia solidária como uma alternativa a ser construída “nos interstícios que as crises inerentes ao capitalismo deixam desocupados”. De acordo com ele, existem dois exemplos que ilustram como os empreendimentos solidários ocupam espaços dentro da economia capitalista: “a terra deixada improdutiva que, via reforma agrária, é entregue aos trabalhadores e, também, o lixo que infesta as nossas cidades e que é reciclado por cooperativas de catadores”.

Em sua obra “Introdução à economia solidária”, o economista reconhece que a autogestão exige um esforço adicional dos trabalhadores na empresa solidária. Além de cumprir as tarefas ao seu cargo, cada um tem que se preocupar com os problemas gerais da empresa. Em outras palavras, é um modo de produção que rompe com a clássica divisão social do trabalho, criando as condições para a superação do trabalho alienado.

Na definição de Singer, “a economia solidária é a escolha pelo coletivo. É produzir, planejar, comercializar e dividir os ganhos do trabalho coletivamente”. Também é construir “um novo sistema, uma nova economia, baseada em valores fundamentais, como a democracia, a autogestão, a valorização do ser humano, o respeito ao meio ambiente e à justiça social”. No Brasil, mais de 2 milhões de pessoas escolheram essa forma de viver, de produzir e repartir, “em oposição ao individualismo, ao egoísmo, ao vencer sozinho, que o capitalismo prega”.

Sobre o desafio de consolidar um modo de produção autogestionário e associativo, Singer lembrou a história do socialista utópico Robert Owen (1771-1858), considerado um dos fundadores do cooperativismo. “Owen propôs à Rainha da Inglaterra que, ao invés de simplesmente ajudar os pobres, fossem criadas oportunidades de sobrevivência por meio do trabalho coletivo. É isso que a economia solidária faz. E é isso que devemos fazer”, instigou.

Justa Trama, um caso de sucesso

Diretora-presidente da Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol/RS), Nelsa Fabian Nespolo, citou um exemplo que considera “bem emblemático” para mostrar que é possível construir outro sistema de produção: a Cooperativa Central Justa Trama, uma cadeia produtiva, que inicia no plantio do algodão agroecológico e vai até a comercialização das peças de confecção produzidas com este insumo. São cerca de 600 trabalhadores em cinco estados do Brasil, entre agricultores, coletores de sementes, fiadoras, tecedores e costureiras.

Segundo Nelsa, a Justa Trama “é a única cadeia produtiva completa de economia solidária do mundo”. Agricultores que plantam algodão sem uso de agrotóxicos, nos estados do Ceará e do Mato Grosso do Sul, se organizaram em torno de uma associação. O algodão produzido por eles vai para a Coopertextil, em Minas Gerais, onde são produzidos os fios e os tecidos, que vêm para a cooperativa Univens, no Rio Grande do Sul, onde são confeccionadas as roupas. Integrando a mesma cadeia, a Cooperativa Açaí, no Amazonas e em Rondônia, faz botões, adereços e bonecas com retalhos de pano, e, em Porto Alegre, o coletivo Inovarte produz jogos e bichos, também, com retalhos de tecidos. 

 “Não há capitalista envolvido, e os ganhos são divididos de forma justa”, destaca Nelsa, ressaltando que este não é o único caso de sucesso na economia solidária. “Há várias outras experiências bem sucedidas de finanças solidárias, como as redes de trocas e os bancos comunitários, e vários sistemas de comercialização e de promoção da cultura. É uma grande diversidade espalhada pelo Brasil, América Latina e pelo mundo afora”.

A líder cooperativista criticou o papel do Estado no fomento do sistema cooperativo de produção e consumo. “Se a economia solidária estimula outra forma de organização das empresas, oferecendo oportunidades de emprego, valorização pessoal e democratização das relações de trabalho, e se ela tem a capacidade de fazer planejamento, combater a desigualdade social e promover outras formas de consumo, por que o Estado não investe massivamente na economia solidária? Talvez seja porque os seus líderes afrontam as políticas neoliberais e globalizadoras. Talvez porque os conceitos de 'comunitário' e 'coletivo' ainda sejam vistos como um fantasma presente na economia solidária”, desabafou.

"Que existência é essa, que planta sem veneno, que o lixo vira renda, que a renda é distribuída de forma justa entre todos, que recicla, que cuida do meio ambiente e que constrói uma sociedade diferente? Isso é a economia solidária!”. (Nelsa Nespolo, presidente da Unisol/RS)

“Economia solidária é uma opção de vida e trabalho”

Integrante do empreendimento Misturando Arte, Katiucia Gonçalves, falou sobre as diversas formas possíveis de finanças solidárias, como o consumo, as trocas e a poupança coletiva. Para ela, “quando compramos algo, temos que perguntar: o que estamos fomentando? para onde vai nosso dinheiro?”. É assim, explicou, “que construímos autonomia e identidade. Assim, praticamos as finanças solidárias”.

Maribel Kauffmann, artesã integrante do Empreendimento Inovarte e da Rede Olhares do Sul, destacou a necessidade de exigir dos governos a execução de políticas públicas para a área de economia solidária. “Temos direito, como qualquer cidadão, a políticas e recursos públicos para impulsionar e viabilizar os nossos negócios. Não queremos assistencialismo, queremos respeito pela nossa opção de trabalho e vida. Queremos o Estado como protagonista de desenvolvimento sustentável e inclusivo, combatendo as desigualdades sociais e cumprindo a Constituição Cidadã de 1988, e não um Estado mínimo”, defendeu.

A comercialização na economia solidária é a concretização de todos os esforços de produção e de logística. É a etapa em que se obtêm os recursos necessários à subsistência e ao bem viver. Por isso, explica o professor Roberto Marinho, “as políticas públicas de economia solidária foram criadas”. Segundo ele, “elas existem para fortalecer o processo de resistência e para que essa resistência transforme a realidade de cada um”.

Miguel Rossetto, ex-ministro do Trabalho e Previdência Social no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, reafirmou a importância dos movimentos populares continuarem resistindo contra a retirada de conquistas históricas dos trabalhadores e pelos direitos de quem escolhe a economia solidária como instrumento de transformação social. A opinião é compartilhada pelo ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, que cobrou “mais ousadia das organizações ligadas à economia solidária”, no sentido de “radicalizar a democratização do sistema produtivo”. Um dos pioneiros na adoção de políticas públicas para o setor em âmbito municipal, como prefeito de Porto Alegre, e, depois, em âmbito estadual, como governador do Estado, Olívio acredita que “a economia solidária pode enfrentar as desigualdades provocadas pelo capitalismo”.

Vale a pena conhecer: Casa da Economia Solidária
Onde: Rua Vigário Jose Inácio, 303, no Centro de Porto Alegre
O que comercializa: artesanatos e produtos da agroindústria familiar, todos com selo da economia solidária.

 

Foto e texto: Daiane Cerezer

ADverso/Edição 224 - Janeiro/Fevereiro - 2017