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Quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Confira a entrevista com a professora de economia da UFRGS, Rosa Angela Chieza, sobre a MP da Liberdade Econômica.

Por: Daiani Cerezer

Portal ADverso - Por que e em que contexto surge a MP da Liberdade Econômica, cujo texto-base foi aprovado na Câmara no dia 13 agosto?

Rosa Chieza - A MP 881/2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado. Ao mesmo em tempo que esta MP tem como objetivo estimular o empreendedorismo, com a aprovação de medidas para tal (a agilização para constituição de empresas, redução de procedimentos e automatização de registros, entre outras), o que é positivo, ela traz na sua essência medidas que  limitam o Poder de interferência do Estado e uma mini reforma trabalhista que tende a precarizar ainda mais o mercado de  trabalho. Esta MP está inserida no contexto da adoção de medidas desestruturantes do Estado brasileiro em curso desde a Emenda Constitucional do teto dos gastos (nº 95/2016) e da reforma trabalhista de 2017 e é a representação daquilo que a revista The Economist chamou de “a perversão do neoliberalismo”, por conjugar uma ideia de extrema liberdade com autoritarismo político (embora sob uma roupagem democrática). 

Veja, a MP “estabelece garantais de livre mercado” ora, com as transformações do capitalismo, desde pelo menos, no final do século XIX e início do século XX, a garantia do princípio da livre concorrência, em muitos casos, somente será obtida, numa economia de mercado, se houver a intervenção estatal.  E isso precisa ser levado em conta. Apenas para citar um exemplo, grande parte dos pequenos e médios empreendedores não sobreviveria a luta concorrencial predatória das grandes empresas., neste caso para garantir a liberdade deste empreendedores, é primordial ação do estado,estabelecendo e fiscalizando normas de regulação e  fiscalização. 

Ainda, se de um lado, o objetivo do Governo é restringir o papel do Estado no controle e na fiscalização da atividade econômica, ou seja, dar mais liberdade para um segmento da sociedade, de outro, a mesma medida coloca em risco alguns avanços na relação entre capital e trabalho como, por exemplo, o direito de cobrar na Justiça, horas extras não pagas pelo empregador. Mas como apresentar a prova de horas extras trabalhadas (e não pagas) se a “liberdade econômica” restringiu a possibilidade de registros destas horas extras? Esta liberdade tem o objetivo de reduzir o custo decorrente de sistemas de registros de pontos? Ou também reduzir custo do empregador decorrente de horas trabalhadas não pagas? Parece que isso está implícito por que dificulta/impede a prova por parte do trabalhador. E, se isso for intencional (porém não explícito), estaremos legalizando o que eu chamaria de escravidão do século XXI. Qual é o grau de liberdade do empregador, neste caso? Ele poderá exigir que o trabalhador tenha uma carga horária diária de 18h, sem registro de horas extras e sem o pagamento  das mesmas?

Outra medida aprovada é a que determina que seja informado um prazo para análise do pedido para obtenção de licenças, alvarás e quaisquer outras liberações pelo Poder Público. Diante disso, se após ter passado o prazo não houver manifestação do Poder público, o pedido será considerado atendido. Então quer dizer que se o Poder público não se manifestar no prazo previsto - o que pode ocorrer diante de casos complexos e por outras razões  diversas - a licença ambiental, por exemplo, para desmatar e destruir as florestas, poluir os rios estará autorizada? E o alvará para profissionais (de saúde, por exemplo) não capacitados também estará autorizado? Nestes casos, de “liberdade para o mercado” conforme está previsto na MP, o custo será de toda a sociedade, seja ele, de custos ambientais, ou custos de saúde pública e também custos no Poder Judiciário, decorrentes de processos judiciais que tenderão a crescer se o estado deixar para mercado atribuições que são da essência de estado. Até mesmo Milton Friedman, o defensor da Liberdade, adverte que os fins não justificam os meios. E liberdade absoluta pode até ser interessante do ponto de vista filosófico, mas não é para o homem imperfeito. Além disso, toda liberdade deve ser alcançada por meios adequados e discutidos pela sociedade.

Esta medida de liberdade econômica que, segundo seus defensores, garantiria mais liberdade para atividade econômica ao impor restrições ao poder regulatório do Estado, fragiliza o Estado (e eu não estou falando de tamanho de estado, mas de poder e autonomia estatal), em prol de um grupo, e assim, o Estado, corre o risco de ser mais facilmente cooptado por este grupo e por consequência, fragilizar ainda mais a autonomia do Estado nacional, com perdas para o coletivo, mas, em especial, com perdas maiores para os grupos mais fragilizados.  

Veja, a sociedade avançou quando o Estado estabeleceu limites às liberdades para escravizar a força de trabalho. Também avançou quando o estado limitou as liberdades de o empregador exigir de seu trabalhador uma carga horária de trabalho de 18 horas diárias, através da limitação da carga horária de trabalho diário. Então, a garantia das liberdades de todos exige restrição de algumas liberdades, e esta restrição deve ser garantida pelo estado, para impedir a barbárie, que o processo histórico do avanço civilizatório já nos mostrou.

Portal ADverso - A senhora a vê como continuidade da reforma trabalhista?

Rosa Chieza - Sim, esta MP incorporou uma minirreforma trabalhista. A surpresa é que toda matéria trabalhista não tenha sido considerada como um “jabuti” e, por consequência, excluída integralmente da referida norma. Assim como foi excluída a mudança no regime jurídico de contratos de trabalho acima de 30 mil reais mensais, os demais tópicos que envolvem a reforma trabalhista não deveriam ter sido inseridos nesta MP, na minha avaliação. Primeiro, porque a reforma trabalhista já foi feita em 2017, sem que os impactos esperados fossem conhecidos, por conta do equívoco no diagnóstico da referida reforma e, cuja dose do mesmo “remédio“ vem sendo receitado novamente nesta MP. E, segundo, se o objetivo é estimular o empreendedor, deveria obrigatoriamente ter incorporado a desburocratização e a redução de custos decorrentes dos serviços de cartório vigentes no Brasil, por exemplo.   

Portal ADverso - Quem ganha e quem perde se a MP for aprovada? Algum setor específico será mais beneficiado ou prejudicado com essa medida?

Rosa Chieza - Não há dúvida que os trabalhadores serão os mais prejudicados. Além da crise que já fragiliza o trabalhador que, diante do desemprego se sujeita a menores salários  e  piores condições de trabalho, a MP, ao tentar  acabar com as restrições ao trabalho aos domingos e feriados, dispensando o pagamento em dobro e com folga em outro dia da semana, o ônus cairá sobre o trabalhador e sua família. Felizmente, o Senado não aprovou este item.

Numa crise como a atual, este quadro se fragiliza. E, ao invés de o Estado proteger o lado mais frágil da sociedade, ele está, legalmente, fragilizando-o ainda mais.  Às vezes, parece que o Brasil está indo na direção histórica do pré-contrato social porque o Estado, conforme apontou o pai do liberalismo econômico, deve fazer justiça para proteger os indivíduos das injustiças e da opressão causada por outros indivíduos na sociedade. E no Brasil, os “novos” liberais legalizam esta possibilidade de injustiça para o lado mais frágil. Outro dia assisti a uma reportagem que mostrava que vários restaurantes em São Paulo estão ofertando o serviço de uso do micro-ondas para trabalhadores aquecerem a sua marmita que trazem de casa. Os trabalhadores entrevistados manifestaram-se dizendo que, com o salário que recebem, é impossível comprar o almoço no buffet ofertado pelo respectivo restaurante. Veja, os liberais do século XIX como David Ricardo defendia que, diante do fato de os trabalhadores estarem recebendo um salário de subsistência, nem impostos o Estado deveria cobrar dos trabalhadores. Pois hoje, os “novos” liberais que leram mal os clássicos do liberalismo econômico, desejam legalizar o trabalho abaixo do salário de subsistência, pois o mesmo já não recebe o mínimo para a subsistência e, assim mesmo, desejam extrair excedentes do trabalho, colocando-o, muitas vezes, abaixo do nível de subsistência. Os empresários defensores desta medida consideram salário apenas como custo. Mas é preciso lembrar que também significa demanda  porque o salário é custo para uma empresa, mas também irá  comprar os produtos de outras empresas ou até da mesma empresa. Então, ao cortar salários e reduzir custos, as empresas também estão enfraquecendo o mercado e isso tem consequências macroeconômicas como a aprofundamento da crise da economia brasileira, que estamos enfrentando.   

Portal ADverso - A MP, aprovada, pode gerar fraudes no mercado de trabalho? Que irregularidades poderiam ser?

Rosa Chieza - Veja que a medida aprovada determina que seja informado um prazo para análise do pedido para obtenção de licenças, alvarás e quaisquer outras liberações pelo Poder público. E se, após ter passado o prazo, não houver manifestação, o pedido será considerado atendido. Isso poderá trazer consequências negativas para toda a sociedade. Se o poder público, em especial municípios que já atuam com reduzido número de servidores, ao não conseguirem analisar a licença ou alvará no prazo determinado, as consequências recairão sobre o consumidor uma vez que a respectivo alvará estará “aprovado pelo texto da MP, sem sequer ter sido analisado pelo Estado (municipal, estadual ou federal). Como eu saberei se o prestador de serviço como, por exemplo, um profissional de saúde, está devidamente capacitado para prestar tal serviço? Isso poderá trazer custos maiores para toda a sociedade, na medida em que as eventuais vítimas recorrerão à saúde pública em função de atividades ilegais ou irregulares prestadas por profissionais não habilitados. E também recorrerão  ao Poder Judiciário, o que ao fim ao cabo irá pressionar para cima os gastos públicos, em função de o Estado não ter exercido a sua função exclusiva de Estado. Esta atribuição é do Estado, e não do indivíduo porque, ao definir o grau de liberdade de uma sociedade, primeiro é preciso  atender ao princípio de que os fins não justificam os meios. E, neste caso, muitos cidadãos poderão estar correndo riscos em função de o Estado não ter exercido o seu papel, em função das  medidas  que limitam o poder de interferência das instituições do Estado.

Portal ADverso - Gostaria de comentar mais algum ponto?

Rosa Chieza - Se o governo pretende promover o crescimento econômico, estas medidas que objetivam a agilidade da constituição de empresas, a redução de procedimentos e a automatização de registros, podem ser necessárias; porém, não são capazes de promover a retomada do crescimento econômico. Para isso, é necessária a intervenção do Estado na economia com a adoção de políticas anticíclicas. O Brasil já vivenciou a crise do neoliberalismo em 1999. O mundo já passou pela crise deste modelo - o México em 1995, a Ásia em 1997, a Rússia em 1998 e, a Argentina em 2001. Depois desta crise, em alguma medida, procuramos nos proteger e, agora, retomamos um neoliberalismo radical como se nada tivéssemos aprendido. 

Por fim, gostaria de frisar sobre a relevância da garantia da fiscalização e do controle por parte do Estado, os quais permitem também proteger e garantir a concorrência entre os agentes econômicos. Do contrário, com omissão estatal, grande parte dos pequenos empreendedores não sobreviveria à luta concorrencial predatória das grandes empresas.

Defender que o Estado, ao fiscalizar e controlar, estaria infringindo a liberdade econômica, é um equívoco. Ao contrário, são estas atividades estatais que garantem maior liberdade para todos, ainda que cerceando graus de liberdade de alguns. No entanto, registre-se que ninguém é livre para descumprir leis ambientais, apenas para citar um exemplo, dentre tantos. O Estado, ao limitar determinadas liberdades como, por exemplo, que NÃO se pode incendiar a Amazônia, garante a liberdade para que todos tenham acesso ao ar respirável. Ou o Estado, ao limitar a liberdade de ação de grandes oligopólios, garante a liberdade de pequenos e médios empreendedores empreenderem e, assim por diante. Ou seja, desde a criação do contrato social, a sociedade abre mão de algumas liberdades para, em troca, viver em sociedade em relativa paz. Assim, as ações regulatórios e fiscalizações do Estado nas áreas tributárias, aduaneira, ambientais, trabalhistas, sanitárias e outras,  são formas de garantir a liberdade de todos, ainda que cerceando a de alguns.