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Quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Segunda entrevistada da série da ADUFRGS para o Janeiro Branco trata de Saúde Mental relacionada ao trabalho  

A psicóloga e professora da UFCSPA, Mayte Raya Amazarray, é a segunda entrevistada da série da ADUFRGS para a campanha Janeiro Branco. Mayte investiga temas ligados à Psicologia Organizacional e do Trabalho, com foco em Saúde do trabalhador, atuando principalmente nas questões de saúde mental e trabalho, violência e assédio laboral, intervenção psicossocial e promoção de saúde. Nesta entrevista, Mayte fala sobre como o trabalho e as relações construídas no ambiente profissional interferem na Saúde Mental do trabalhador e pontua que a pandemia “agudizou o que já não estava bem”. Na verdade, disse, “vivemos uma segunda epidemia paralela, a pandemia do esgotamento profissional”.

Portal ADVerso - O Janeiro Branco alerta para a necessidade de refletir sobre os temas ligados à Saúde Mental. Como o mundo do trabalho se relaciona com isso? 

Mayte - Quando a gente fala em Saúde Mental, não podemos perder a dimensão de que a Saúde Mental é uma construção que resulta das nossas interações e relações sociais. Portanto, ela está em permanente construção. Toda nossa subjetividade é construída, desde o princípio, na relação com o outro. A Saúde Mental tem essa natureza psicossocial. Diante dessa visão, o mundo do trabalho, a atividade profissional das pessoas, importa muito. Não só por uma questão objetiva do tempo que nos dedicamos a isso, mas, principalmente, pela questão subjetiva. Porque nos subjetivamos, nos construímos, a partir daquilo que fazemos, do nosso trabalho, das relações que são constituídas ali, dos aprendizados e da caminhada que vamos trilhando. Então faz todo o sentido falar de Saúde Mental em relação ao trabalho. 

Portal ADverso - Como inserimos este assunto no contexto da pandemia?

Mayte - Estamos iniciando 2021 durante uma pandemia e no mundo inteiro temos observado que a pandemia, por conta das ameaças que traz à saúde, à segurança de todos nós, e por conta disso, as restrições necessárias de convívio social, de circulação livre, têm trazido repercussões diretas e imediatas no cotidiano das pessoas. E isso ocorreu de uma forma abrupta, sem planejamento prévio. E acabou por tornar mais evidente, agudizar situações que já não estavam bem, como situações de trabalho que já causavam sofrimentos e padecimentos, especialmente para determinados tipos de trabalho, de natureza mais intelectual e cognitiva. Temos outra epidemia em paralelo, que é prévia, mas que os estudos mostram que houve aumento agora: sofrimento psíquico, quadros diagnosticados de transtornos mentais, agravamento de quadros que já existiam. Em razão do que estamos vivendo, é fundamental falarmos ainda mais de Saúde Mental em relação ao trabalho e às relações de trabalho. 

Portal ADverso - O que apontam os estudos sobre a realidade laboral dos professores? E o que se percebeu com a pandemia?

Mayte - Os estudos sobre servidores públicos em geral, como os professores, têm mostrado um determinado perfil de adoecimento. Como eu vinha dizendo, em trabalhos de natureza preponderantemente cognitiva, intelectual, com uma carga afetiva importante, que é o caso da docência, se sabe, e não é de hoje, dessa sobrecarga dos professores, em qualquer nível de ensino, inclusive os professores do magistério superior. Existe uma sobreposição de atividades, e não é só a questão da carga horária, de estar envolvido diretamente nas atividades de ensino, os professores que ocupam cargos nas universidades públicas assumem diversas outras demandas, atividades, tarefas que não são visíveis para os demais e a sociedade. Além disso, existe um contexto de ameaça e insegurança. Nesse trabalho, muitas vezes há uma desvalorização por parte de governos, mas também por parte da sociedade. Uma não valorização da Ciência, da produção de conhecimento. Como se isso por si só não supusesse um grande investimento afetivo e de energia. O desgaste em termos de energia dos professores aparece nas formas de Síndrome de Burnout, por exemplo, que é o esgotamento profissional. E a agudização de outras situações relacionadas a transtornos mentais. Isso tem sido de fato uma tendência. 

Quando a gente pensa em trabalho docente e pandemia, na necessidade de transpor esse trabalho para o home office, é lógico que outras questões, fatores de risco e fontes de sofrimento se adicionaram a isso tudo. Para essa categoria em específico, na qual eu me incluo também, é bem importante que a gente possa de fato aprofundar os estudos, conduzir algum tipo de acompanhamento e diagnóstico dessa situação e pensar alternativas para que a gente possa transformar essas condições de trabalho.

Os professores têm, pela própria natureza da profissão, um índice de envolvimento muito grande com o trabalho. Isso também pode ser um fator de risco e no home office mais ainda porque não se tem um horário que se diga: “pronto, agora acabou”. Podemos cair nessa incessante produtividade. Então precisamos mesmo falar disso entre os professores.

Portal ADverso - Na pandemia, vimos o espaço público e mundo do trabalho se misturarem ao espaço privado das nossas casas. Quais os efeitos disso na Saúde Mental? 

Mayte - De fato foi o que aconteceu. Nesse aspecto é bem importante a gente diferenciar uma questão. Às vezes se fala em home office, em outras, teletrabalho ou trabalho remoto. Acho importante demarcar que o teletrabalho é algo que vem sendo instituído em empresas privadas, em alguns órgãos públicos, mas que possui um ordenamento, um regramento próprio, uma preparação, um desenho do trabalho voltado para essa condição de trabalho à distância. Prevendo, inclusive, as questões estruturais de equipamento, sistema, softwares necessários, jornada laboral. Portanto, embora, seja à distancia, existe uma estrutura preparada para acomodar esse trabalho, até com previsão de idas presenciais ao local de trabalho ou reuniões. 

Isso é muito diferente do que aconteceu conosco no home office. Nós não estamos em teletrabalho, nós estamos trabalhando em casa, em home office. Não há um planejamento. As coisas aconteceram de forma abrupta, não foi nossa escolha. As pessoas precisam fazer arranjos físicos para conseguir trabalhar em casa. Se pensarmos em termos de saúde ocupacional, a ergonomia física em casa não é a mesma dos locais de trabalho. Então temos (misturados) essa logística e necessidade de organização da vida de trabalho, os medos, anseios e angústias diante dessa ameaça de vírus, diferentes configurações familiares, diferentes necessidades de acordo com cada trabalhador, demandas de filhos em idades escolares distintas. De fato, não é uma situação confortável ou de fácil manejo. 

No início, o home office pode ter representado para algumas pessoas um alívio. A gente não pode esquecer a epidemia prévia do esgotamento profissional. Então, talvez em algum momento, ficar um pouco no aconchego da sua casa, fazendo seus horários, sem enfrentar deslocamentos possa ter representado alívio. Mas isso é momentâneo, porque o trabalho não foi desenhado para ser assim; a vida não foi desenhada para ser assim. 

Além disso, no home office, as pessoas acabaram trabalhando mais. A produtividade aumentou. A gente já vinha numa cultura muito produtivista e, com a pandemia, isso aumentou. Mas, isso tem um custo. E o risco é o custo em relação à nossa saúde. Nosso sofrimento psíquico também se expressa em adoecimentos físicos. 

Portal ADverso - E como o trabalhador pode reagir a isso, professora? Num contexto de alto desemprego e crise como vivemos? 

Mayte - Já sabemos por estudos e observação que em ambientes ou países onde há um alto índice de desemprego ou de condições mais precárias de trabalho - com muitas subcontratações, terceirizações, trabalhos por tempo indeterminado - o assédio acaba sendo um componente para as pessoas que estão com sua renda diminuída ou sem renda, mas também afeta aqueles que estão empregados. O assédio moral traz um sofrimento imensurável e acaba tendo uma repercussão muito grande em termos de Saúde Mental e de personalidade; afeta as relações dessa pessoa para além do âmbito do trabalho. Ele extrapola o ambiente laboral e realmente fragiliza outros laços sociais dessa pessoa. O assédio moral também é um sintoma desse modelo de gestão de lógica produtivista que acaba sendo adotado como discurso e prática em boa parte das organizações.

Porque o assédio funciona como um fator de “poderia ser pior, eu poderia estar sem trabalho”. Então, ainda que seja difícil ou ruim, as pessoas se submetem às situações de assédio. E talvez isso esteja na raiz do porque essas condições se perpetuam.

Pesquisadores têm denominado esse conjunto de patologias dentro de um guarda chuva das Patologias da Solidão. Porque são patologias que resultam de um modelo social e de relações pautada num individualismo e competitividade extremos, em que desaparecem os laços cooperativos e sociais que poderiam fazer frente a essas estruturas de poder abusivas. Então, talvez as alternativas para fazer frente a isso vão nesta direção: resgatar esses laços coletivos, humanizar o trabalho, valorizar as pessoas, valorizar o trabalho das pessoas, o que não se confunde com o resultado do trabalho. O trabalho é o investimento de energia, aprendizagens, as inúmeras mobilizações físicas e subjetivas que as pessoas fazem para dar conta e alcançar os objetivos do trabalho. 

Nas instâncias que nos cabem, precisamos trazer essa reflexão e também promover mudanças que são de diferentes níveis e âmbitos. Precisamos fazer um resgate do coletivo, dos espaços coletivos de reflexão, de atuação, de auxílio, de apoio mútuo. Então, o que os trabalhadores poderiam fazer é, justamente, resgatar esses âmbitos coletivos, analisar e refletir sobre o trabalho coletivamente, para também usufruir coletivamente dos frutos e benefícios desse trabalho, que não acontece sem interação social. 

Portal ADverso - E sindicatos materializam esse espaço coletivo, concorda? 

Mayte - Sim, os sindicatos são um exemplo, as organizações sociais, as associações de maneira geral. Isso pode ocorrer em ambientes não institucionalizados, em coletividades com senso grupal que podem emergir espontaneamente. Mas está claro que para fazer valer, isso precisa vir por meio de estratégias socialmente reconhecidas na nossa sociedade.