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Quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Em sua longa trajetória, a artista recebeu importantes prêmios, realizou grande número de exposições dentro e fora do Brasil

A professora e artista plástica Maria Lucia Cattani, que morreu, prematuramente, em fevereiro do ano passado, aos 56 anos, foi homenageada pelo Instituto de Artes da UFRGS, com a exposição Gestos e Repetições, da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. O evento levou ao público uma retrospectiva de sua obra, um percurso dos anos 80 até seus últimos trabalhos. 

Com curadoria conjunta dos professores Maristela Salvatori e Paulo Silveira, a exposição teve o intuito de preservar a memória e homenagear Maria Lucia Cattani (1958 - 2015), que atuou, por 28 anos, como pesquisadora e docente no Instituto de Artes da UFRGS. 

Para a curadora, Maria Lucia foi como uma irmã. Elas se conheceram no início dos anos 80, ainda estudantes de artes, mas só frequentaram a mesma classe nos cursos do professor Paulo Peres, no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre. A afinidade logo as uniu e montaram um atelier juntas (partilhado com Maria Ivone dos Santos, hoje também professora na UFRGS). Esta parceria no trabalho artístico e na vida persistiu ao longo dos anos, com eventuais distanciamentos, até que se reencontraram como colegas docentes na UFRGS. Segundo Maristela, foi um convívio muito estreito, com muito trabalho e alegrias compartilhadas.

Quando decidiu se aposentar, para se dedicar integralmente à produção artística, Maria Lucia foi diagnosticada com um câncer no cérebro. Viu-se restringida do convívio social e sua partida deixou um grande vazio. Chegou a concluir um belíssimo mural na sala de sua residência, que lhe exigiu muita energia e esforço. Em função da doença, ficou parcialmente imobilizada, o que a obrigou a realizar todo o trabalho com a mão esquerda, em cadeira de rodas, que, por vezes, era colocada sobre uma mesa. A reprodução fragmentada, em tamanho real, deste painel será publicada em um livro organizado por Nick Rands, viúvo de Maria Lucia.

Em sua longa trajetória, Maria Lucia recebeu importantes prêmios, realizou grande número de exposições dentro e fora do Brasil, e fez pós-graduação nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que estreitou laços e parcerias internacionais, que influenciaram a sua prática docente de quase 30 anos. Também coordenou a Galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, trabalho pelo qual tinha o maior carinho e grande dedicação.

O professor de Artes Visuais e de História das Artes da UFRGS, Paulo Silveira, lembra que, em anos mais recentes, “Maria Lucia estava interessada em aumentar a versatilidade da sua produção, experimentando novas soluções expressivas, talvez pensando em caminhos complementares ou em um público maior”. 

Entre outras manifestações, ela dirigiu boa parte de sua atenção para a publicação de livros de artista, que tinha sido tema das investigações de Silveira no mestrado e, depois, no doutorado. “Tentamos criar, no Instituto de Artes (IA) da UFRGS, o que poderia ter sido a primeira coleção organizada de livros de artista, a ser mantida na Biblioteca ou na Pinacoteca do IA”, conta o professor. Ao mesmo tempo, lamenta que este sonho não tenha sido realizado, “pela ausência de espaço físico complementar, o que é fato comprovável ainda hoje, além da falta de coragem e ousadia da Instituição, que foi a triste percepção que nós dois tivemos”.

Na avaliação do ex-aluno de Maria Lucia e professor do Instituto de Artes da UFRGS, Eduardo Ferreira Veras, o trabalho da artista “conjugava, de modo muito equilibrado, certo engenho matemático e meticuloso, de herança conceitual, e uma delicadeza comovente”. Para ele, “as transparências, sobreposições, nuances, gestos curtos e composições largas, tudo se articulava como em um quebra-cabeça sedutor”, da mesma forma que “a atenção às questões de natureza formal e a procura da beleza, combinavam-se ao espírito curioso e indagador, que buscava testar os limites e as possibilidades conceituais dos meios, seja na gravura, no vídeo ou na pintura”. 

“Era bom estar ao lado dela”

A relação de Maria Lucia Cattani com a professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, Claudia Zanatta, começou durante o curso de graduação em Artes Visuais, quando foi sua aluna na disciplina de gravura em metal. “Lembro-me dela ensinando, muito meticulosa. Sempre havia muita concentração e movimento nas aulas. Depois, em 2002, a professora Maria Lucia foi minha orientadora de mestrado. O tema era intervenção urbana e, para nós duas, foi um desafio, porque ela estava começando a trabalhar na pós­graduação. Eu era a sua primeira orientanda e trazia um trabalho vinculado a algumas noções de biologia, minha formação inicial na UFRGS.” 

Claudia conta que as duas estavam aprendendo a trabalhar com pesquisa e, a partir daí, ficaram amigas. A professora Maria Lucia fazia as orientações em casa, ambiente que favorecia a aproximação. “Nunca houve uma situação de hierarquia. Ela era uma pessoa aberta, alegre, cheia de vida, da qual era bom estar perto. A casa era muito agradável, com um lindo atelier e um pequeno jardim. Não havia muita pressa, e tinha sempre um café.” 
Claudia lembra como “era bom ir lá”, porque se podia apreciar tanto o trabalho de atelier da Maria Lucia como o do esposo dela, Nick Rands, que também é artista. “Ver os dois trabalhando, com muitas diferenças, mas também com muitos pontos de contato, é uma imagem feliz, que ainda trago presente.” 

Trânsito entre linguagens

Maria Lucia trabalhou em conjunto com colegas de outros Departamentos, como os professores Daniel Wolff e Celso Loureiro Chaves, do Departamento de Música. Composições inspiradas nas obras da artista mostravam que havia um “transido entre linguagens”, na definição de Cláudia Zanatta. Uma mostra deste potencial ocorreu na reinauguração da Biblioteca Pública de Porto Alegre, que recebeu uma exposição de gravuras da artista com uma performance do professor Celso ao piano.

Festival Vaga-Lume

Durante anos, a atividade de pesquisa de Maria Lucia esteve também vinculada ao Laboratório de Multimeios do Instituto (LIMIA). Como coordenadora do LIMIA, ela criou o Festival Vaga-Lume, uma mostra de vídeos, que ocorria, no IA, anualmente. Entre outros objetivos, o Festival conseguiu unir pesquisa e extensão, com participantes de diferentes universidades do Brasil e do exterior, além de valorizar a produção dos estudantes.

A ex-aluna Louise Kanefuku destaca o envolvimento de Maria Lucia com o trabalho dos alunos. “Ela era muito bem humorada, curiosa, e tinha uma empolgação quase infantil, um frescor de dar inveja a muitos jovens do Instituto de Artes”. 

Rafael Pagatini, também ex-aluno, reconhece em Maria Lucia a pessoa mais importante da sua vida acadêmica. “Ela tinha uma energia enorme e, muito mais que professora, foi amiga, conselheira e mestra. Tive a sorte de ter sido seu orientando na graduação e na pós-graduação.” Rafael é grato à professora que, segundo ele, foi uma incentivadora do seu trabalho, “mesmo tendo consciência das minhas limitações”, observa. Aliás, uma característica enfatizada por colegas e alunos é o seu entusiasmo pelo trabalho e a forma como ela contribuiu, decisivamente, nas escolhas de seus alunos. Foi o que ocorreu com Pagatini, que, por influência de Maria Lucia, tornou-se professor universitário.

Ele lembra que a professora sempre incentivou os alunos a experimentar, a procurar novos suportes e tecnologias, “a entender que a pesquisa, em arte, está na busca incessante de novas formas de interpretar o mundo”. Foi com Maria Lucia, que Pagatini aprendeu que, “por mais racional que eu pudesse ser, ainda assim restaria o gesto poético e sutil da arte. E tudo isso ela ensinava com um sorriso no rosto e um olhar curioso”.

Depoimentos

“Apaixonada pelo que fazia, como artista, era obstinada e dedicava-se sistematicamente ao trabalho de atelier. Como professora era igualmente exigente, não esperava soluções, fomentava a prática poética e o questionamento como motor do processo artístico. Sabia ser leve e generosa no trato com o outro, tinha um sorriso franco e o coração aberto. Estimulava o crescimento e entusiasmava-se com as conquistas dos alunos. Deixou profundas marcas nas pessoas que com ela conviveram.” (Maristela Salvatori, professora do Instituto de Artes da UFRGS e coordenadora da Galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo)

“Era cuidadosa, tinha um trabalho limpo, perfeccionista. No dia a dia de sala de aula, como todos nós, sofria com as precariedades da Universidade, mas, mais que todos, não se deixava abater, sorria e contornava os obstáculos. Esta era a sua marca pessoal e inesquecível: o brilho nos olhos, o sorriso para os colegas e alunos, o carinho nas relações. Foi uma das mais sensíveis artistas professoras da história da UFRGS.” (Paulo Silveira, professor de Artes  Visuais e de História da Artes da UFRGS)

“Sempre foi muito focada, trabalhava muito, gostava do que fazia. Era uma artista que estava sempre inquieta, pesquisando e inventando. Estudou em vários lugares (Inglaterra, EUA, Bélgica, Japão), desenvolvendo uma pesquisa importante, principalmente em gravura. Prestava muita atenção ao banal, ao cotidiano. Sempre tinha um rigor, uma precisão, ligados à delicadeza das pequenas coisas.” (Claudia Zanatta, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e do Departamento de Artes Visuais do IA da UFRGS)

“Foi uma excelente professora, dessas que de fato se fazem inesquecíveis. Fui seu aluno em Introdução à Gravura, no início dos anos 90. O que impressionava ali não era o quanto ela dominava o assunto ou alguma eventual erudição. O que marcava, verdadeiramente, era o entusiasmo que ela transmitia. Nenhuma afetação blasé ou superioridade tediosa. Parecia, mesmo, interessada nas produções e nas ideias dos estudantes. Gostava de compreender, discutir e compartilhar.” (Eduardo Ferreira Veras, professor do Instituto de Artes da UFRGS e ex-aluno de Maria Lucia)

Biografia 

Maria Lucia Cattani (Garibaldi 1958 - Porto Alegre 2015)
Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1981), fez especialização em Artes Plásticas pela PUC-RS (1983), Mestrado (Master of Fine Arts), pelo Pratt Institute, Nova Iorque (1990) e PhD pela Reading University, Inglaterra (1998). Realizou Pós-Doutorado na University of the Arts London, (2007-2008). Foi professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1985-2013). 

Integrando uma geração de artistas que ganhou projeção a partir dos anos 80, realizou Residências de Artista no Nagasawa Art Park Artist-in-Residence, Tsuna Town, Japão, e no Frans Masereel Centre, Kasterlee, Bélgica. Ao longo de sua trajetória, realizou numerosas exposições, recebeu prêmios e está representada em importantes coleções do Brasil e do exterior, com gravura, livro de artista, pintura, vídeo e instalação.

 

Foto: Arquivo Pessoal
Texto: Daiani Cerezer
ADverso/Edição 222 - Setembro/Outubro - 2016