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Quarta-feira, 20 de setembro de 2017

“O Brasil tem como futuro, cada vez mais, o seu passado”

Que Brasil emergirá das reformas do governo Temer? Para tentar responder perguntas como esta, a Revista Adverso conversou com o professor da Universidade de Campinas (Unicamp), Marcio Pochmann. Para o economista, graduado pela UFRGS, em 1984, o governo brasileiro não tem nenhuma estratégia em seu programa de privatizações, a não ser “tapar o buraco das finanças públicas”. A política adotada por Temer, na opinião de Pochmann, compromete, inclusive, a soberania nacional, na medida em que entrega para o setor privado o controle de empresas públicas de áreas estratégicas, como petróleo, gás e energia. Nesta entrevista, ele também projeta o futuro de serviços públicos essenciais, e adverte: com a limitação dos investimentos por duas décadas, o SUS e as universidades públicas poderão desaparecer.

 

Adverso - Em entrevista ao Portal Sul21, você afirmou que “estamos vendo praticamente o fim da classe média assalariada brasileira”. Qual será o reflexo desta nova realidade para o futuro das relações de trabalho no Brasil?
Pochmann – O Brasil vive mudanças significativas na sua infraestrutura, que terminam rebatendo em transformações mais amplas na superestrutura. Significa que o Brasil vem, nas últimas duas décadas, transitando de um sistema produtivo de base industrial para um sistema com base nos serviços. Estamos caminhando, no Brasil, para uma realidade em que quase 4/5 dos ocupados estão empregados no setor terciário da economia. Essa mudança do sistema produtivo tem reflexos na composição da sociedade. Nós tínhamos, na década de 80, por exemplo, uma ampla classe trabalhadora de base industrial, que se caracterizava pelo protagonismo na atuação sindical, nas negociações coletivas de trabalho e em novas proposições para a sociedade. Hoje, temos, cada vez mais, a presença de uma classe trabalhadora de serviços, cuja natureza de constituição é muito diferente da classe trabalhadora industrial, que vivia dentro de uma estrutura de empregos bastante hierarquizada. O antagonismo dessa estrutura ocupacional dava muita clareza à luta de classes, diferentemente do que temos hoje, numa estrutura de serviços que é, de certa maneira, mais horizontalizada, em que a hierarquia não é tão clara e que a luta de classe não aparece tão precisa. Ela existe, mas não com a mesma natureza da classe trabalhadora anterior. Essa mudança da sociedade urbana-industrial para a sociedade de serviços tem impacto, também, na classe média assalariada. Era muito grande a presença da classe média assalariada nos diferentes empregos, que resultavam do setor industrial, mas também nas cadeias de comércio e distribuição, e no próprio emprego nas estatais. Nós estamos vendo o fim dessa classe média assalariada tradicional, para uma expansão de ocupações intermediárias de natureza mais autônoma. É o chamado empreendedorismo. Formas que se diferenciam, em termos de contratação e remuneração, daquela classe média relativamente estável, com padrão de consumo muito identificado. E também nós verificamos uma transição no que diz respeito à burguesia brasileira, que era, predominantemente, urbano-industrial. Os grandes empresários, seus líderes, com sua forma de posicionamento no País, deram lugar a uma burguesia, cada vez mais, de natureza comercial. Esse era o País que vinha emergindo nessas duas primeiras décadas deste século e que sofreu um abalo ainda mais significativo, a partir de 2015, por conta da recessão econômica. Ingressamos na recessão mais dramática que o Brasil sofreu durante o capitalismo constituído e, simultaneamente, enfrentamos os impactos das reformas institucionais, que estão mudando o papel do Estado na sociedade. Ou seja, a regulação do mercado de trabalho, a introdução da legislação de terceirização, as mudanças dramáticas da CLT e as alterações da atribuição do Estado no que diz respeito aos investimentos pelos próximos 20 anos. O gasto social tenderá para uma trajetória de declínio, que é o inverso do que se verificou a partir da ascensão da democracia de 1985 para cá, no Brasil. Sem falar, evidentemente, nas mudanças da política econômica que, agora, começam a ficar mais claras, no que diz respeito ao processo de privatização. Nesse sentido mais amplo, conseguimos perceber problemas sérios nas estruturas da sociedade e, também, na própria atuação das instituições de representação da sociedade antiga, que, de certa maneira, praticamente deixam de funcionar.      
  

Adverso - O que existe de verdade (e de mentira) no argumento de que "o trabalhador brasileiro é muito caro"?
Pochmann – Nós tínhamos, até pouco antes da recessão, um argumento que vinha dos empresários brasileiros, informando a dificuldade de competir com empresários de outros países. A China, em especial. Eles diziam que lá o custo do trabalho é muito baixo, as relações de trabalho muito precarizadas e o custo de trabalho, no Brasil, tornava nossos produtos pouco competitivos. Até 2014, o custo do trabalho na China era praticamente 1/5 do custo do trabalho industrial brasileiro. De fato, uma diferença muito grande. A recessão e as mudanças no mercado de trabalho, em função das mudanças na legislação trabalhista derrubaram, rapidamente, esta relação. O último dado, de 2016, comprova que o custo de trabalho na China já é 16% superior ao custo da hora trabalhada na indústria brasileira. Eu estou comparando com a China, mas se a gente aplicar o mesmo parâmetro, em 2014, o custo do trabalho nos Estados Unidos equivalia a quase 1/3 do brasileiro. Hoje, o nosso custo é 17% inferior. Ou seja, não é possível encontrar comprovação empírica de que o custo do trabalho no Brasil é elevado, impedindo a expansão da economia ou mesmo a contratação. Esse tipo de afirmação é equivocada, pelo menos no momento atual. Ela não tem base na realidade. 

Adverso - Nos governos Lula e Dilma, o Brasil conseguiu bons índices econômicos ao inserir as classes mais pobres no mercado de consumo de bens e serviços. Que impacto a redução da massa salarial e a nova legislação trabalhista poderão ter na economia, nos próximos anos?
Pochmann – De alguma forma, o Brasil sai da recessão submetido às alterações no Estado brasileiro. Aponta para uma uma normalidade histórica, em que a democracia funciona apenas como aparência, e não como essência. É uma normalidade histórica, se considerarmos os últimos cinco séculos da história do Brasil, que vem acompanhada da ausência da base da pirâmide social, do conjunto do povo brasileiro, no orçamento do Estado. É recorrente a ausência dos pobres no orçamento. Muitas vezes, o Estado se orienta para atender os segmentos mais privilegiados da sociedade. Outra normalidade histórica é uma economia dependente do exterior. Uma economia que não funciona para seu mercado interno, mas para o comércio externo. Isso se verificou desde a chegada dos portugueses no Brasil até 1930, quando o dinamismo da nossa economia dependia da exportação. De 1930 até os dias de hoje, o mercado interno, em maior ou menor medida, era o principal dínamo da economia nacional. Nós estamos vendo, pelas reformas conduzidas por esse condomínio de interesses em torno do governo Temer, o esvaziamento do mercado interno e a crescente dependência dos negócios com o exterior. Isso se expressa no esvaziamento do mercado de trabalho, rebaixamento das condições de trabalho, reduções de salários e, possivelmente, a diminuição dramática das contratações no setor público, em troca de outras formas de contratação por licitação de menor preço. Tudo que a legislação trabalhista e as terceirizações irão permitir é mais um sinal que vem comprovar a perda de importância do mercado interno. Nós estamos nos tornando um país continental, que depende, cada vez mais, da sua capacidade de exportar para se desenvolver, enquanto o mercado interno tende a perder importância. Essa opção é bastante estranha em um país com a população que temos, mas é a escolha que está sendo feita pelo governo atual. 

Adverso - Do ponto de vista da política econômica, onde os governos Lula e Dilma acertaram, onde erraram e o que faltou?
Pochmann – Todos os governos cometem erros e acertos. De forma simplificada, eu diria que os dois governos não cometeram erros estratégicos. Cometeram erros pontuais, no meu modo de ver, no que diz respeito a circunstâncias muito específicas. Os dois governos são marcados por uma forte preocupação com a inclusão social e o entendimento de que o enfrentamento da desigualdade social no Brasil seria, justamente, a possibilidade de nós termos um desenvolvimento diferente. De certa forma, o Brasil se colocou entre poucos países no mundo, nos anos 2000, que conseguiram combinar crescimento, democracia e distribuição de renda. É claro que tivemos erros pontuais. Por exemplo, logo no início, em 2003, perdemos a oportunidade de manter a moeda desvalorizada e sofremos um processo de valorização da moeda. A mesma coisa aconteceu logo após a crise de 2008. A relação cambial teve pontos que, talvez, devessem ser conduzidos de outra maneira. No governo da presidenta Dilma, a desoneração, da forma generalizada como ela foi feita, terminou criando problemas de natureza fiscal. É bem verdade que a proposta do governo Dilma para as desonerações fiscais era de uma magnitude relativamente pequena, que foi, de certa maneira, ampliada por uma espécie de custo fiscal do golpe, conduzido, naquele momento, por um Legislativo de oposição à presidente. O deputado Cunha, junto com a oposição, operou as chamadas “pautas bombas”, que implicaram em problemas fiscais, que não existiam. Obviamente, que ali havia uma correlação de forças muito insatisfatória para o governo Dilma, que fez com que desoneração tivesse uma amplitude não prevista originalmente.
 
Adverso - O governo Temer vem promovendo um dos mais violentos ataques às conquistas sociais do povo brasileiro. A aprovação da EC do teto de gastos, que vai congelar os investimentos públicos por duas décadas, terá reflexos dramáticos em setores vitais, como saúde e educação. Na sua avaliação, que Estado o governo Temer deixará como legado? 
Pochmann – Os impactos das ações do governo Temer já são perceptíveis nesse momento. A situação é de degradação, mas se as políticas adotadas agora forem mantidas, seus efeitos terão um prolongamento para vários governos. Considerando que as estimativas de redução dos gastos são bastante significativas, eu não consigo perceber outra circunstância que não o fim do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, o desaparecimento da educação pública no Brasil, especialmente do ensino superior. Nós estamos falando de um gasto social equivalente a 23% do PIB (dados de 2014). Há várias estimativas do que seria o gasto social em relação ao PIB, dependendo do tipo de crescimento que vamos ter nos próximos 20 anos. Numa relação de dinamismo do PIB, relativamente baixo, nós podemos chegar daqui a 20 anos com o gasto social ao redor de 15% do PIB. Obviamente, que não é possível financiar saúde e educação da forma como vem sendo financiado. Estamos vendo o estado falimentar de algumas universidades estaduais, como no Rio de Janeiro. Universidades públicas tendem a desaparecer ou funcionarão de uma maneira tão precária, que derrubará a qualidade que elas possuem atualmente.     

Adverso - No radar dos governos neoliberais, a privatização de empresas públicas sempre é vista como uma política preferencial. Em pouco mais de um ano, o Governo Temer já anunciou a intenção de privatizar 57 estatais. O que representaria para o Brasil a privatização das universidades e institutos federais? Pelos movimentos deste governo, isso pode ser considerado um risco? E que outros setores estratégicos o senhor considera que estão ameaçados?
Pochmann – Nós já tivemos, nos anos 90, a experiência de governos neoliberais. Eu diria que os dois Fernandos, o Collor e o Cardoso, tinham certa estratégia do ponto de vista da privatização. De alguma forma, os dois exerceram um governo de natureza neoliberal, que buscava o ingresso do Brasil na globalização. Vimos, sobretudo no governo FHC, que a retirada do Estado desta função mais empresarial poderia, justamente, contribuir para a ampliação dos gastos sociais. Obviamente, nós não vimos isso acontecer e, tampouco, o deslocamento de ativos (o Brasil foi o segundo País nos anos 90 a transferir patrimônio público para o setor privado). Ao contrário, a taxa de investimentos do País esteve extremamente baixa nos anos 90. No atual governo Temer, o despreparo e desespero é inegável. Não há nenhuma estratégia para as concessões e privatizações, que não sejam tapar o buraco das finanças públicas. O que nós estamos vendo é a ausência de uma estratégia para a venda do patrimônio, cujos resultados serão trágicos para o País. Eu não vejo a possibilidade da privatização do ensino público, porque nós não temos uma sociedade com renda suficiente para pagar pelo ensino privado. Os segmentos que podem estar no segmento privado, ou nos serviços privados, já estão. O que nós teremos, possivelmente, é uma regressão grande do ponto de vista da presença de crianças e jovens no sistema educacional. Com a privatização, as parcelas empobrecidas da população ficarão fora da escola, porque não têm condições de pagar. A saúde é a mesma coisa. Basta ver a saúde brasileira até 1995, antes das primeiras experiências do SUS. Eram atendidos apenas aqueles que tinham Carteira de Trabalho e os que tinham dinheiro para pagar. Os demais, na verdade, ficavam à margem. É um pouco esse o horizonte. O Brasil tem como futuro, cada vez mais, o seu passado.  

Adverso - A EC 55, a reforma trabalhista, as terceirizações e o PL 116, se aprovada, terão um forte impacto na vida dos servidores e dos serviços públicos. O que o senhor acha da alegação do governo de que o Estado brasileiro é demasiadamente inchado e intervensionista?
Pochmann – Nós estamos caminhando para um Brasil pré-Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), a primeira iniciativa, que vem de Getúlio Vargas, com o objetivo de construir uma racionalidade burocrática no Estado. O desaparecimento da estabilidade no emprego, a possibilidade de contratação, não mais por concurso público, mas por licitação por menor preço, como algumas prefeituras já começaram a fazer, teremos, cada vez mais, um estado conduzido por oligarquias e articulações familiares, muito comuns no Brasil. Se você abandona a estabilidade no emprego, a troca de governo significará a saída daqueles que eram próximos ao governo de plantão por outros adesistas do novo governo, o que retirará qualquer racionalidade imaginável e necessária nas atribuições do Estado moderno. Isso, de certa maneira, é uma profunda regressão. O Brasil, hoje, segundo o IBGE, teria ao redor de 11 milhões de trabalhadores no setor público, que, de maneira geral, têm um perfil mais classe média. Caminhamos para um processo de precarização intenso, talvez jamais visto, desde a década de 30, no Brasil.

Adverso - Por que o senhor afirma que a privatização é "um mito neoliberal"?
Pochmann – A ideia do mito é que a presença do Estado retira recursos do setor privado e o impede de investir em diversos setores, promovendo crescimento econômico. O esvaziamento do Estado e sua saída de setores produtivos permitiriam que as empresas privadas cumprissem um papel muito mais eficiente que o exercido pelo Estado. Ocorre que essa perspectiva não se mostra verdadeira. A privatização de empresas públicas, no Brasil, não resultou em um avanço de investimentos. Na década de 90, por exemplo, 2/3 dos recursos usados na compra de estatais vieram do exterior, porque a privatização, naquele período, também foi um processo de internacionalização. Uma parte delas foi adquirida pelo capital estrangeiro. Porém, o capital estrangeiro veio para o Brasil não para ampliar investimentos, mas para comprar plantas já existentes. O que se percebe é que o setor privado apenas ocupa o espaço que, anteriormente, era do Estado e, por isso, nós não temos crescimento econômico como resultado das privatizações. Até porque, em países de capitalismo tardio, como é o caso brasileiro, a presença do Estado é uma expressão da fraqueza do setor privado. Quando o presidente JK, no seu plano de metas, privatizou a fábrica nacional de motores - a única montadora de veículos no Brasil, ele entendia que aquela era função de empresas privadas. Em compensação, o que era estratégico para um país continental como o Brasil, era produzir energia elétrica para todas as cidades e integrar as telecomunicações. Então houve um movimento de facilitação, pois o setor privado não poderia fazer isso... Não quero ser favorável ao Estado, por princípios. O fundamental é que o Estado esteja presente em segmentos estratégicos para o desenvolvimento do País. Talvez, atualmente, tenhamos algumas empresas públicas, em alguns setores, que seriam geridas com mais eficiência pelo setor privado. Agora, permitir a presença do setor privado em setores estratégicos, de certa maneira, compromete o futuro do Brasil. O exemplo mais concreto é o setor de petróleo, gás e energia, que, em países soberanos, não são privatizados. Nesse sentido, nós estamos comprometendo as possibilidades do Brasil crescer nos próximos anos.   

Perfil 
Marcio Pochmann é economista e professor da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e presidente da Fundação Perseu Abramo. 

Por Araldo Neto