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Terça-feira, 21 de maio de 2019

Ex-deputados constituintes se mostraram preocupados com ataques ao texto de 1988

Por Manoela Frade

Um encontro histórico realizado na noite desta segunda-feira, 20, na ADUFRGS-Sindical, uniu três ex-deputados constituintes gaúchos para debater o tema 'O pacto constitucional de 1988 continua válido?' Com mediação do jornalista Juremir Machado, os constituintes Hermes Zaneti (PSB), Ibsen Pinheiro (MDB) e Olívio Dutra (PT) falaram por mais de duas horas sobre a construção de consensos que tornou possível aprovar a Constituição Federal por unanimidade. 

Após 30 anos, os três se reuniram para apresentar diferentes visões sobre o processo e até críticas à Constituição Cidadã, mas foram unânimes em defender sua manutenção como salvaguarda da democracia, e também seu aperfeiçoamento no sentido de ampliar a garantia dos direitos individuais dos brasileiros, e o papel do Estado nisso. 

No debate, os constituintes também responderam a perguntas da plateia e terminaram analisando o papel da Constituição na atual conjuntura política, econômica e social do país. E os ataques a direitos garantidos na Constituição como a Seguridade Social e a autonomia universitária, por exemplo.

A íntegra do debate está no canal da ADUFRGs no YouTube.

Veja também a cobertura do Sul21.

Confira alguns trechos do debate:

Ibsen Pinheiro 


"Falamos do pacto [constituinte], dos conteúdos, do que tem na regra democrática de intocável. Mas, quero manifestar minha inquietação [com o momento]. Isso me assusta. Será que o jogo democrático está ensejando os avanços de que o país necessita no plano social, no plano de políticas econômicas, no seu relacionamento internacional? Será que estamos avançando? 

O último processo eleitoral produziu um sentimento de ‘extremização’. Esse sentimento pode ter substituído a realidade, mas foi o sentimento imperante a ponto de dizer que a maioria dos votantes do segundo turno não votou, vetou. ‘Eu não vou por aqui, não vou por ali, então só resta ir por aqui’. Esta inquietação decorre de que nós não conseguimos transformar o sistema democrático em um instrumento de ação nas políticas do país. O jogo democrático não pode esgotar-se em si mesmo sob pena do questionamento. 

As comunidades não se suicidam. O suicídio é um gesto individual de desespero. As comunidades buscam caminhos, quaisquer que sejam. O que fazem as comunidades nos momentos de risco? Dispensam o acessório. O que é acessório? O habeas corpus, liberdade de expressão, democracia representativa; nada disso supera comer, morar e abrigar-se. Isto é o que move o instinto animal do ser humano, como indivíduo e como sociedade. Por isso, nos momentos de altos ricos, a primeira coisa que se dispensa é isto: liberdade de expressão, habeas corpus, garantias individuais em defesa da moradia, do abrigo para o frio e da comida. 

Isto é um desafio que o nosso sistema precisa enfrentar. Mas com a radicalização, talvez o segundo turno não tenha sido uma boa experiência pra nós. Porque ele ‘desotimizou’ a busca de certas afinidades. Qualquer uma das duas candidaturas que foram para o segundo turno, se tivesse buscado afinidades próximas, teria construído uma maioria, e não duas minorias disputando a maioria intermediária. Este é o modelo do segundo turno: a extremização dos conflitos, independentemente das qualidades individuais. Fosse pelas qualidades individuais, como se procura um genro, por exemplo, não há nenhuma dúvida sobre o candidato que tinha as qualidades individuais adequadas na comparação que se possa fazer com o vencedor. Mas não era isso que estava em causa. O que estava em causa era ‘eu sou contra aquilo, eu sou contra este modelo. Então não sei por onde vou, sei que não vou por aí’. A gente escolheu por exceção. O que precisa nosso modelo democrático? Eu espero que possamos construí-lo. Do ponto de vista do país, temos que construir um sistema que tenha a capacidade de funcionar. Fizemos muitas cópias do sistema americano. Por que não buscamos um sistema eleitoral que produzisse maioria? Tivemos no Império vários modelos, nunca o voto majoritário. Até que chegamos em 1946 a esse modelo atual. Parece que temos um compromisso do qual nos orgulhamos e chamamos de jeitinho, que é uma maneira de conciliar o inconciliável. Aí se produz um resultado aparente que todos nós festejamos, mas não funciona. Portanto, a inquietação com o quadro que aí está, nos leva a temer que a democracia não consiga funcionar. O pacto prevalece para o jogo democrático, mas talvez ele não consiga prevalecer para os conteúdos econômicos, sociais, estratégicos. Pelo menos, que reafirmemos nosso compromisso democrático. Vale tudo: dentro do jogo democrático".

Olívio Dutra

"O processo constituinte que gerou a Constituição de 88 foi muito rico. Se nós pudéssemos repeti-lo, iríamos mais longe, claro, e iríamos aperfeiçoá-lo e aprofundá-lo. Entendo que a Constituição de 88 está sobre grave ameaça. Não só ameaça, ela está sendo pisoteada nas questões que foram levantadas aqui. A última é essa: acabar com a autonomia das universidades, que está garantida no texto constitucional. Em continuando esse processo, de desrespeito aos avanços sociais, de [desrespeito] ao protagonismo do povo brasileiro, a criminalização, essa ideia de confundir religião com o Estado; continuando nesse processo, nós temos que ir fermentando na sociedade uma possibilidade de logo ali adiante reconstruirmos um processo constituinte. Não pode ser um tabu.

Como vão indo as coisas, não nos dão segurança de que amanhã as agressões se transformem em algo que nenhum de nós quer: que fuja da ideia de democracia como objetivo permanente. A democracia não é uma tática. A democracia tem que ser um objetivo permanente, estratégico, que tem que ser aperfeiçoada constantemente, mas não pisoteada ou estreitada. O que nós estamos vendo é isso, a ideia de uma democracia sem povo; é a ideia do neoliberalismo, que não é só nosso aqui, é em várias regiões do mundo. Essa ideia está avançando. Acho que nos cabe aqui, sim, ter uma séria preocupação sobre como vai andar esse processo daqui para diante e ir discutindo questões de como deve funcionar o Estado, com o povo; discutindo o que é o Estado? A quem ele serve? Quem tem sido dono do Estado? Como a cidadania pode ser exercida de forma que ela amplie o controle público sobre o Estado? Essa é uma questão chave. 

Hoje não tem grande empresa que não esteja ligada a um banco. A banca internacional comanda a economia, as finanças do mundo; 500 grandes empresas têm o controle da maior parte da riqueza que circula no mundo. No Brasil, cinco magnatas têm riqueza igual a de 100 milhões de brasileiros. Com tal concentração de renda nós podemos dizer que a democracia está consolidada? Que nós vivemos realmente a democracia que nós queremos e sonhamos?  Evidentemente que não. Então, é preciso ter cuidado com o que estamos vivendo, com as agressões que a democracia está sofrendo. E lutar pela democracia não como uma questão tática, mas como uma questão a ser perseguida permanentemente. Um objetivo permanente, estratégico. Queremos o Estado de Direito democrático, vivido, não só de discurso e da regra legal, que são coisas importantíssimas, mas tem que ser vivido pelas pessoas, pelo ser humano. E este me parece ser o central: a luta pela democracia para retomá-la de quem a assaltou via fake news e qualificá-la. Então vamos lá! É a nossa luta de hoje e daqui para diante". 

Hermes Zaneti

"Quando assumi a presidência do CPERS, fizemos uma grande discussão: nós vamos reivindicar ou nós vamos organizar? Chegamos à conclusão de que tínhamos que reivindicar enquanto nos organizávamos, e a organização nos ajudava nas reinvindicações. Na minha visão estamos diante dessas circunstâncias neste momento. Falamos das agressões trabalhistas, sindicais, os sindicato estão sendo objeto de uma agressão inominável. E isso me faz lembrar aquela época lá do CPERS (1975 a 1979). 

Eu me lembro do MUP (Movimento da Unidade Progressista) que teve um papel muito importante na constituinte, porque foi também luta, garra, briga. O gancho do alpinista foi a nossa visão de MUP para a Constituição: joga o gancho lá em cima e vai se apoiando para subir na construção daquilo que se pretende. 

O que está sendo objeto de agressão, de desmanche daquilo que nós pretendíamos? Eu citei três pontos e insisto que temos que abraçar esses três pontos e brigar por eles (veja a exposição de Zaneti no começo do debate). Porque aí é a construção da libertação do sistema financeiro e da imposição daquilo que é direito do povo que está sofrendo as consequências. São 64 milhões de brasileiros inadimplentes, 28 milhões de desempregados, subempregados ou desiludidos. Numa nação?! Aí se fala em Previdência? Imagine se tudo isso estivesse funcionando, produzindo a contento. Qual seria o problema da Previdência? Não está havendo reforma da Previdência. Está havendo extinção da Previdência. Isso tem que ficar muito claro: é um jogo de palavras. Porque o sistema financeiro quer meter suas garras agora, além de tudo o que está fazendo, na capitalização. O que é a capitalização? É a construção de uma poupança individual, na condição que cada um tenha para fazer isso. Então já vamos partir de que quem não tem nada, não vai ter nada. Para que então o Estado? Para fazer o que quer fazer aqui no Rio Grande do Sul? O Rio Grande do Sul é credor da União. O RS tem bilhões de reais para receber do governo federal. E o que está fazendo? Somos credores e vamos vender o patrimônio do estado. Ficamos sem o patrimônio e com uma dívida cada vez maior. Não dá! Temos que reagir. Cadê o povo gaúcho? [A reação] tem que começar aqui. Porque este estado tem tradição de luta. Eu aposto nisso".