Leia o artigo.
Temos, já há algum tempo, convivido com o aumento das taxas de suicídio, de automutilação e de depressão de adolescentes e jovens. Para se ter uma ideia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano de 2016, tivemos o suicídio como a segunda razão mais comum de morte entre adolescentes e jovens de 15 a 29 anos – a primeira causa foram os acidentes de trânsito - que se pode pensar também como um modo de suicídio em uma dimensão mais passiva.
No Brasil, em 2016, o suicídio foi a 4ª causa de morte entre jovens. Segundo o Ministério da Saúde, no ano de 2016, tivemos 3097 adolescentes e jovens tirando a própria vida. A preocupação com o tema se justifica quando se percebe o aumento no numero de suicídios no decorrer dos anos. Por exemplo, no intervalo entre os anos de 2000 e 2016, tivemos um aumento de 30% nas taxas de suicídio juvenil, já que, em 2000, foram 2142 jovens tirando a própria vida (Fonte: Revista Piauí, n.149. Fev 2019, p. 16-21), ou seja, 955 adolescentes menos que em 2016.
Frente a estas estatísticas e aos relatos de educadores, pais e professores, nos inquietamos com os modos de sofrimento e de mal-estar que os adolescentes e jovens vem apresentando. O que a ausência da vontade de viver, que parece proliferar entre os jovens, pode revelar sobre as condições de nosso laço social? O que não vai bem com esta turma que, tantas vezes, insiste em nos perguntar: tá ligado? Revelando no cacoete linguístico uma interrogação sobre a posição do desejo e da ligação com o Outro?
Ora, sabemos que a formulação do desejo de viver não é uma tarefa fácil para ninguém, sobretudo na passagem adolescente, quando o tema do sentido da vida se amplia e a pergunta sobre o si mesmo ganha um novo tônus.
Essa passagem é um momento de ruptura com tudo aquilo que, até então, o sujeito considerava como seu: o lugar tecido às custas do Olhar parental já não garante mais a sustentação na posição de ser falado. Para uma certa adolescência, o lugar de proteção da infância, cujo abrigo era o lastro da consistência do adulto, gradativamente, faz trânsito e o sujeito, ainda sem muito preparo, se vê na iminência de ter de dizer-se em nome próprio, bancando nada menos do que um lugar de fala, com toda a exposição que a situação comporta. Este “novo nome” é escrito a partir de elementos que os jovens recolhem da cultura com todas as instabilidades próprias às variáveis de raça, de classe social e de gênero que participam deste turbilhão.
Não raro, vemos nesta fase, o abandono escolar, a apatia, o isolamento, as pequenas transgressões e outros sintomas claros do mal-estar na adolescência que pautam o cotidiano das famílias e das instituições sociais e educacionais por onde estes jovens circulam.
O sequestro atual do tema do suicídio pela psiquiatra medicamentosa deve nos fazer interrogar de que forma vem funcionando a rede de proteção e acolhimento daqueles que fazem suas primeiras incursões ao mundo social por si mesmo. Aqui me refiro às instituições sociais, à família, à escola, às políticas públicas dirigidas aos jovens, entre outros dispositivos do campo da educação e da saúde mental. Cabe a pergunta, sobre como temos escutado esses sinais de sofrimento psíquico.
Digo isso, pois, se tomarmos acontecimentos como o de Suzano, ocorrido em março de 2019, e as estatísticas crescentes de tentativas de suicídio de universitários, temos de pensar nos sinais que estes jovens transmitem ainda de qualquer ato trágico. Por exemplo, segundo narrativa póstuma ao acontecimento de Suzano, os meninos teriam evadido precocemente da escola. Nesse sentido, importa que se pergunte: onde estava a busca ativa da política educacional? O que é feito, afinal, pelas instituições sociais, quando se produz a evasão de um aluno em idade escolar? Algum serviço da Rede vai atrás dele e da família a fim de esclarecer o motivo do abandono? Onde a rede de proteção integral, preconizada no ECA, se apresenta? O que é preciso ocorrer para que as políticas sociais, o Outro da cultura, se ocupe destes jovens?
Nas pesquisas que realizamos no campo da Socioeducação, costumamos dizer que acaso as outras políticas públicas de proteção à infância e adolescência funcionassem, a Socioeducação seria dispensável. Sabemos que ninguém se torna um jovem infrator, em conflito com a lei, quando faz 15 anos. Vemos que a trajetória infracional é tecida por muitos descasos, abandonos e invisibilidades, seja no âmbito familiar, seja no âmbito social.
Quem se liga nesses adolescentes? E de que forma? Por que as estatísticas de evasão escolar na escola pública são tão significativas justamente na adolescência? O que temos feito, ou deixado de fazer, a fim de vincular estes jovens de vida empobrecida à escola? – me refiro aqui empobrecida em diferentes sentidos, não somente financeiro.
Se, quando nos deparamos com as estatísticas de suicídio de adolescentes, nos perguntamos sobre o desejo deles de viver, temos que necessariamente nos perguntar sobre os discursos que fazemos circular no laço social atual, discursos que são anteriores e que constituem a materialidade simbólica com a qual os jovens irão dialogar. De que forma podemos ainda constituir espaços sociais pautados por uma perspectiva de futuro passível de lançar os jovens na articulação de desejos de vida e de criação e não em pautas de morte?
Freud (1910/1969), em 1910, em uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, que tratava justamente do suicídio de adolescentes de escolas secundárias, sublinhou, vivamente, que a escola deveria fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio – argumento dos educadores da época; a escola deveria lhes transmitir a vontade de viver, pois se trata de uma época em que os sujeitos estão afrouxando os laços com os pais e precisam de um outro espaço, que não a casa e a família, para investir o seu despertar no mundo lá fora.
Assim, se os adultos de hoje produzem narrativas mórbidas e a morte da alteridade fica na ordem do dia, precisamos apostar que o jovem é aquele que, em seu despertar, forja a condição de inaugurar novos possíveis a partir das diferentes formas de leitura do real que recebe como herança. Nesse sentido, o despertar da adolescência pode ser visto como um ato que carrega um efeito ético-político capaz de inscrever o singular do sujeito e, ao mesmo tempo, a dimensão coletiva desta inscrição. Ao entregar o seu “novo” ao mundo, na forma de desejo pela vida e pela criação, o jovem confirma a cara noção de que tudo está em transformação o tempo todo e de que a origem necessariamente não precisa ser o destino (Roseno, 2019).
É preciso assinalar que quando no lugar do desejo de viver da juventude de uma época, encontramos, do ponto de vista do discurso social, a posição de se deixar morrer, estamos realmente frente a um adoecimento que não é só do sujeito, mas, sobretudo e, de modo anterior, do laço social. O que vamos fazer com isso?
DICA! Gostou deste artigo? Conheça o livro "Retratos da Pesquisa em Psicanálise e Educação", organizado por Rose Gurski e Rinaldo Voltolini, que está em fase de pré-lançamento pela Editora Contracorrente, com lançamento para o mercado geral previsto para outubro.