Não há respostas prontas e consolidadas para essas questões que demandarão intensos debates, ferrenhas batalhas e ousadia sem precedentes por partes das entidades sindicais representativas dos profissionais da educação escolar
Por José Geraldo de Santana Oliveira
Ante a capitulação do Supremo Tribunal Federal (STF) aos nefandos interesses do capital no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N. 324 e do Recurso Extraordinário (RE) N. 928252, autorizando a terceirização em todas as atividades econômicas, com a seguinte tese vinculante (que obriga a todos) — “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho em pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” —, desesperadamente, pergunta-se, no âmbito dos profissionais da educação: tudo pode ser terceirizado, inclusive o ensino? Não há mais nenhuma regra para a terceirização? Decretou-se o fim dos direitos dos profissionais da educação?
Como esse debate somente se prontifica e põe como ordem do dia após a tal fatídico julgamento, não há respostas prontas e consolidadas para essas complexas questões; estas demandarão intensos debates, ferrenhas batalhas e ousadia sem precedentes por partes das entidades sindicais representativas dos profissionais da educação escolar, em todos os graus sindicais.
Com a finalidade de contribuir esse incipiente debate, alinhavam-se, aqui, algumas premissas que o embasarão, com a pretensão de lhe dar o inicial suporte jurídico.
Quanto à primeira e instigante indagação sobre a possibilidade de também o ensino ser terceirizado, parece fora de dúvida que a tese vinculante do STF acima transcrita não o exclui. Todavia, como se trata de tese, para se afirmar positiva ou negativamente, impõe-se a necessidade de se verificar se há compatibilidade, no âmbito da legislação trabalhista, que, para o caso concreto, é a Lei N. 6019/1974, que regulamenta a terceirização — com as alterações promovidas pelas Leis Ns. 13429/2017 e 13467/2017 —, e na legislação educacional, consubstanciada na Constituição Federal (CF), Art. 209, e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) — Lei N. 9394/1996.
Com base nessa legislação, pode-se afirmar, de plano, que a terceirização temporária não é compatível com o ensino. Não o é porque o ensino é a atividade principal e permanente de toda instituição dessa natureza e o Art. 2º da Lei N. 6019/1974 só autoriza essa modalidade de terceirização em caso de necessidade temporária e demanda complementar de serviços, que “tenha natureza intermitente, transitória ou sazonal”:
“Art. 2o Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços.
§ 1o É proibida a contratação de trabalho temporário para a substituição de trabalhadores em greve, salvo nos casos previstos em lei.
§ 2o Considera-se complementar a demanda de serviços que seja oriunda de fatores imprevisíveis ou, quando decorrente de fatores previsíveis, tenha natureza intermitente, periódica ou sazonal”.
Desse modo, qualquer estabelecimento de ensino que, invocando a citada decisão do STF, eventualmente, contratar empresa locadora de mão de obra temporária para atuar na sua atividade permanente violará, além do já citado Art. da Lei N. 6019/1974, também o 9º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que estipula: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
No tocante à terceirização permanente do ensino, em que pese a sua “licitude”, nos termos da citada tese vinculante do STF, igualmente, não se apresenta como compatível, sobretudo com a legislação educacional, por múltiplas razões, destacando-se, dentre elas, as seguintes:
I.
A educação é o primeiro dos direitos fundamentais sociais, por escolha do legislador, tendo como objetivos o pleno desenvolvimento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho, consoante o Art. 6º e o 205 da CF, não tendo o STF o condão de alterá-lo, ainda que o queira.
Por essa única e maior razão, a educação não é mercadoria, como ironicamente assentado pelo próprio STF, no acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) N. 3330, de autoria da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), com a Ementa abaixo transcrita:
“EMENTA: AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 213/2004, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.096/2005. PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS – PROUNI. AÇÕES AFIRMATIVAS DO ESTADO. CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA. 1. A FENAFISP não detém legitimidade para deflagrar o processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade. Isto porque, embora o inciso IX do art. 103 da Constituição Federal haja atribuído legitimidade ativa ad causam às entidades sindicais, restringiu essa prerrogativa processual às confederações sindicais. Precedentes. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.379 não conhecida. Participação da entidade no processo, na qualidade de amicus curiae. 2. A conversão de medida provisória em lei não prejudica o debate jurisdicional sobre o atendimento dos pressupostos de admissibilidade desse espécime de ato da ordem legislativa. Presentes, no caso, a urgência e relevância dos temas versados na Medida Provisória nº 213/2004. 3. A educação, notadamente a escolar ou formal, é direito social que a todos deve alcançar. Por isso mesmo, dever do Estado e uma de suas políticas públicas de primeiríssima prioridade. 4. A Lei nº 11.096/2005 não laborou no campo material reservado à lei complementar. Tratou, tão-somente, de erigir um critério objetivo de contabilidade compensatória da aplicação financeira em gratuidade por parte das instituições educacionais. Critério que, se atendido, possibilita o gozo integral da isenção quanto aos impostos e contribuições mencionados no art. 8º do texto impugnado. 5. Não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade. A imperiosa luta contra as relações desigualitárias muito raro se dá pela via do descenso ou do rebaixamento puro e simples dos sujeitos favorecidos. Geralmente se verifica é pela ascensão das pessoas até então sob a hegemonia de outras. Que para tal viagem de verticalidade são compensadas com esse ou aquele fator de supremacia formal. Não é toda superioridade juridicamente conferida que implica negação ao princípio da igualdade. 6. O típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. A lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor uma outra desigualação compensatória. A lei como instrumento de reequilíbrio social. 7. Toda a axiologia constitucional é tutelar de segmentos sociais brasileiros historicamente desfavorecidos, culturalmente sacrificados e até perseguidos, como, verbi gratia, o segmento dos negros e dos índios. Não por coincidência os que mais se alocam nos patamares patrimonialmente inferiores da pirâmide social. A desigualação em favor dos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e os egressos de escolas privadas que hajam sido contemplados com bolsa integral não ofende a Constituição pátria, porquanto se trata de um descrímen que acompanha a toada da compensação de uma anterior e factual inferioridade (“ciclos cumulativos de desvantagens competitivas”). Com o que se homenageia a insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem. 8. O PROUNI é um programa de ações afirmativas, que se operacionaliza mediante concessão de bolsas a alunos de baixa renda e diminuto grau de patrimonilização. Mas um programa concebido para operar por ato de adesão ou participação absolutamente voluntária, incompatível, portanto, com qualquer ideia de vinculação forçada. Inexistência de violação aos princípios constitucionais da autonomia universitária (art. 207) e da livre iniciativa (art. 170). 9. O art. 9º da Lei nº 11.096/2005 não desrespeita o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal, porque a matéria nele (no art. 9º) versada não é de natureza penal, mas, sim, administrativa. Trata-se das únicas sanções aplicáveis aos casos de descumprimento� das obrigações, assumidas pelos estabelecimentos de ensino superior, após a assinatura do termo de adesão ao programa. Sancionamento a cargo do Ministério da Educação, condicionado à abertura de processo administrativo, com total observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 10. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.379 não conhecida. ADI’s 3.314 e 3.330 julgadas improcedentes.
O relator, ministro Ayres Brito, registrou em seu voto, aprovado pelos demais ministros, dentre outros fundamentos:
“ […]15. Pois bem, da conexão de todos os dispositivos constitucionais até agora citados avulta a compreensão de que a educação, notadamente a escolar ou formal, é direito social que a todos deve alcançar. Por isso mesmo, dever do Estado e uma de suas políticas públicas de primeiríssima prioridade. Mas uma política pública necessariamente imbricada com ações da sociedade civil, pois o fato é que também da Constituição figuram normas que: a) impõem às famílias deveres para com ela, educação (caput do art. 205); b) fazem do ensino uma atividade franqueada à iniciativa privada, desde que atendidas as condições de ‘cumprimento das normas gerais da educação nacional’, mais a ‘autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público’ (art. 209, coerentemente, aliás, com o princípio igualmente constitucional da ‘coexistência de instituições públicas e privadas de ensino’); c) ainda admitem a prestação do ensino por ‘escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei’, mediante o preenchimento de requisitos também expressamente indicados (incisos I e II do art. 213).
[…]
42. Noutro giro, não me impressiona o argumento da autora que tem por suporte o princípio da livre iniciativa, devido a que esse princípio já nasce relativizado pela Constituição mesma. Daí o art. 170 estabelecer que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)”. Aspecto que não passou despercebido ao Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, consoante os seguintes dizeres do seu parecer: “(…) a liberdade de iniciativa assegurada pela Constituição de 1988 pode ser caracterizada como uma liberdade pública, sujeita aos limites impostos pela atividade normativa e reguladora do Estado, que se justifique pelo objetivo maior de proteção de valores também garantidos pela ordem constitucional e reconhecidos pela sociedade como relevantes para uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Não viola, pois, o princípio da livre iniciativa, a lei que regula e impõe condicionamentos ao setor privado, mormente quando tais condicionamentos expressam, correta e claramente, então conferindo concretude a objetivo fundante da República Federativa do Brasil, qual seja: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (art. 3°). (…)” .
II
Como se colhe do Art. 209 da CF — citado no Voto retrodestacado — e do 7º da LDB —que o regulamenta —, para que a iniciativa privada possa atuar no ensino, há necessidade prévia de: “I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. ”
Salienta-se que o Art. 7º da LDB, que nunca foi objeto de questionamento judicial, acrescenta a essas exigências a da “capacidade de autofinanciamento”.
Tem-se, pois, que, se de outras empresas privadas, sejam comerciais, industriais e/ou de prestação de serviços, para o seu funcionamento, exige-se apenas o registro de seu contrato social e/ou estatuto no respectivo órgão competente e a inscrição no cadastro nacional de pessoas jurídicas (CNPJ), aos estabelecimentos ensino exigem-se, ainda, prévia autorização do Poder Público e demonstração de sua capacidade de autofinanciamento, regulados pelos Arts. 7º — já citado —, 9º,10, 11, 16, 17 e 18, todos da LDB, às quais se somam a avaliação periódica e o cumprimento das normas gerais da educação.
A LDB, ao regulamentar as normas gerais da educação nacional, preconizadas pelo Art. 209 da CF, de cumprimento obrigatório por todos estabelecimentos privados de ensino, quer atuem na educação infantil, no ensino fundamental, no médio e/ou superior, estipula os comandos necessários ao debate que se busca suscitar, notadamente nos Arts. 7º, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 48, 52 e 61.
Tomando-se as obrigações atribuídas aos estabelecimentos de ensino, de maneira intransferível, pelos respectivos sistemas de ensino, em conformidade com os dispositivos da LDB retrocitados, não há como sequer imaginar que elas possam ser transferidas e/ou compartilhadas com empresas prestadoras de serviço.
Ora, se tais atribuições vierem a ser transferidas a empresas prestadoras de serviço, passarão a desenvolvê-las ilegalmente, ou seja, por quem não possui autorização para tanto, posto que são autorizadas ao estabelecimento de ensino, de maneira intransferível.
Como se não bastasse essa impossibilidade jurídica, o simples cotejo dos realçados dispositivos da LDB com o Art. 4º-A da Lei N. 6019/1974 — com a redação dada pela Lei N. 13467/2017 — caracteriza-se como bastante para comprovar o que se disse linhas acima quanto à incompatibilidade do ensino com a terceirização.
O citado Art. da Lei N. 6019/1974 dispõe: “Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
§ 1o A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.
§ 2o Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.
O § 1º deste Art. determina, de maneira taxativa, que cabe à empresa prestadora de serviços contratar, remunerar e dirigir o trabalho realizado por seus trabalhadores, não podendo, portanto, haver entre estes e a empresa tomadora, no caso concreto o estabelecimento de ensino, qualquer relação de subordinação, sob pena de o vínculo empregatício formar-se com este, nos termos do Art. 2º da CLT.
Como o estabelecimento de ensino, na condição de tomador, poderá exigir de professores terceirizados o cumprimento das obrigações pedagógicas que lhes são atribuídas pelo Art. 13 da LDB sem que isto implique violação do que estipula o Art. 4º-A da Lei N. 6019/1974?
Como será possível exigir do professor terceirizado, que somente pode cumprir ordem da empresa prestadora de serviços que o contrata, que: participe da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; elabore e cumpra o plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; zele pela aprendizagem dos alunos; estabeleça estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; ministre os dias letivos e horas-aula estabelecidos; participe integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; colabore com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade?
Se quem contrata o terceirizado é a empresa prestadora de serviços, como garantir o cumprimento das exigências insertas nos incisos II e III do Art. 52 da LDB, que são, respectivamente, um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado e um terço do corpo docente em regime de tempo integral, sem que isto implique descumprimento do que determina o § 1º do Art. 4º-A da Lei N. 6019/1974?
No ensino superior, como cumprir o que determina o §1º do Art. 48 da LDB, no que pertine à qualificação dos professores terceirizados, se quem os contrata e os dirige é a empresa prestadora de serviços?
Na educação básica e na superior, como assegurar que os profissionais da educação escolar (professores e administrativos) terceirizados tenham a formação exigida pelo Art. 61 da LDB se quem os contrata e dirige é a empresa prestadora de serviços?
Em todos os questionamentos acima enumerados, havendo interferência da empresa tomadora (estabelecimento de ensino) na contratação e na direção dos profissionais da educação escolar, o que parece inexorável, o vínculo empregatício se formará com ele, e não como a empresa prestadora de serviços, garantindo-se àqueles todos os direitos assegurados em convenções e acordos coletivos de trabalho, bem como os que lhe são próprios, por força da CLT.
Diante do que exposto, por mais que se tente burlar a própria lei da terceirização, não há como contornar a incompatibilidade de sua aplicação ao ensino.
Ao debate.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da CONTEE