por Diego Pautasso

Mestre e doutor em Ciência Política da UFRGS

Quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O presente artigo discute o papel do movimento comunista (e da União Soviética) na luta anticolonial.

O presente artigo discute o papel do movimento comunista (e da União Soviética) na luta anticolonial. O argumento central é que o movimento comunista foi crucial tanto na resistência à expansão colonial-racista das potências durante a Segunda Guerra, quanto representou uma oposição ao domínio ocidental durante a Guerra Fria, enquanto promovia a luta anticolonial e os movimentos de libertação nacional afro-asiáticos. E por esta razão, o fim da União Soviética fortaleceu a retomada do neocolonialismo a partir dos anos 1990, num articulação entre a escalada intervencionista e o aprofundanmento da agenda neoliberal. 

1. As Grandes Guerras como projetos coloniais

Talvez uma das mais notáveis contribuições da União Soviética foi sua contribuição à luta anticolonial. Nesse sentido, Lênin foi cirúrgico ao mudar o chamamento de Marx: “Proletários de todos os países, e nações oprimidas do mundo, uni-vos!” e compreender que as contradições se aguçariam nos elos frágeis da cadeia imperialista. Esse entendimento político não só atualizou a leitura marxista, como contribuiu para romper com o etnocentrismo reinante no movimento operário europeu. O segundo Congresso do Comintern (1920) já trouxe para o centro do movimento comunista internacional a questão colonial (PRIESTLAND, 2012). Assim, se abriu um ciclo de lutas que resultou no mais impressionante processo de libertação nacional e afirmação da autodeterminação dos povos, combinado com a formação de um campo socialista de 32 nações e um terço da população mundial, transformando um país atrasado numa superpotência e abrindo caminho para novas experiências, muitas delas resistindo e se reinventando na atualidade (VISENTINI, 2017).
As duas Grandes Guerras, mas sobretudo a Segunda Guerra e a Guerra Fria que o seguiu, são apresentadas como a rivalidade entre países do 'mundo livre', do mundo liberal anglo-saxão versus os países totalitários. Essas falácias ocultam sua natureza mais profunda: as duas guerras foram disputas das velhas potências colonialistas que se consolidaram desde o século XIX, sob a bandeira do liberalismo e da prática imperialista (França e Inglaterra, sobretudo) ao conquistar boa parte da Ásia e da África; enquanto as potências desafiantes (Alemanha, Itália e Japão, sobretudo) buscaram tardiamente suas ambições territoriais. Em outras palavras, foi um conflito entre duas gerações de potências, mas com concepções e práticas não muito díspares, baseada na dicotomia civilização/barbárie. Apenas a interiorização da ideologia dos vencedores permite ocultar a inveja e admiração de Hitler diante do Império Britânico e da expansão territorial norte-americana baseada no white supremacy (LOSURDO, 2017, p. 121; 158; 165; 311; 325).    
Durante a Guerra Fria, as rivalidades entre os projetos sociopolíticos continuaram a ser apresentadas em termos similares pelas narrativas hegemônicas: o confronto entre democracias ocidentais e regimes comunistas totalitários. São discursos que povoam inclusive o subconsciente de lideranças autodefinidas como progressistas. Entretanto, tais discursos não resistem ao menor exame dos processos históricos, por qualquer prisma a ser analisado. Primeiro, porque o sufrágio universal só se generaliza nos países centrais após o Pós-Guerra; segundo, porque ainda assim muitos países eram governados por ditaduras, casos da Grécia, Espanha e Portugal; terceiro, e mais importante, os Estados Unidos e seus aliados promoveram diversas ditaduras não somente na América Latina, mas em qualquer lugar em que houvesse risco da emergência de governos populares (Indonésia, Coreia, Filipinas, Congo, etc.). Tais abordagens, oscilando entre a reprodução da propaganda anti-comunista e/ou o etnocentrismo, deixa de considerar ainda que, para além das importantes insuficiências institucionais dos países do “socialismo real”, estes apresentaram avanços inéditos em termos de participação dos segmentos populares nas mais diversas instâncias políticas, da comunidade, passando pela fábrica até as altas esferas decisórias do Estado. 

2. O fim da União Soviética e a retomada do neocolonialismo

O fim da União Soviética e de grande parte do campo socialista representou um notável revés para a luta dos povos. Essa situação permitiu que os Estados Unidos gozassem de uma certa unipolaridade momentânea. A narrativa da globalização se impôs até sobre parte expressiva da esquerda, enquanto esta abandonava conceitos importantes como imperialismo, colonialismo, luta de classes, Estado, soberania e questão nacional. Com efeito, produziu muitas confusões e incapacidade de compreender os acontecimentos da arena internacional na atualidade. 
E a ordem internacional contemporânea não pode ser compreendida sem analisar a dinâmica de retomada do neocolonialismo. E o neocolonialismo se apresenta através da dialética entre neoliberalismo e intervencionismo. São esses dois conceitos que estruturam a expansão – de natureza colonial e racial – dos Estados Unidos e seus aliados no mundo hoje. Detalhe: sem a resistência anteriormente representada pela superpotência (União Soviética) e o movimento comunista internacional de outrora. 
Por um lado, o neoliberalismo tem consequências nitidamente coloniais, raciais e sociais. A primeira delas é o desemprego, a miséria e o fato de segmentos crescentes da população serem jogados à marginalidade, associado ao desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Os dados sobre polarização social (PIKETTY, 2014) são exaustivos para corroborar essa dinâmica socioeconômica. Em paralelo a isso, o neoliberalismo também aprofunda o individualismo consumista. Não apenas pela contradição ambiental do imperativo de crescimento combinado com o caráter limitado dos recursos naturais, o individualismo faz recrudescer o tensionamento social, fragilizando a identidade coletiva, a luta social, a compreensão de quais são os objetivos e quais são os horizontes para além do próprio consumo e lazer – e isso é grave. 
Por outro, a escalada intervencionista tem se aprofundado com o fim da União Soviética, completando o quadro de um mundo em transição. A potência hegemônica não consegue garantir uma ordem internacional estável, ao contrário, recrudesce o uso da força para evitar que surjam as novas configurações de poder que estão em gestação. Isso ajuda a explicar o leque amplo de intervenções diretas, iniciadas na Guerra do Golfo (1991), expandida para Somália (1993), Afeganistão (2001) e Iraque (2003), além de Líbia e Síria a partir da Primavera Árabe (2011) – além das agressões por meio de drones no Afeganistão, Paquistão, Soália e Iêmen. 
Além disso, destacam-se ações eufemisticamente chamadas de políticas de regime change; nada mais do que os golpes no século XXI. Primeiro, a Primavera Árabe, no qual está cada vez mais evidente que seus eventos não foram motivados exclusivamente por dinâmicas internas, de rebeldia contra as ditaduras existentes naquela região, mas insufladas pelas potências, sobretudo Estados Unidos (BENSAADA, 2015). Segundo, as 'revoluções coloridas', ocorridas na Geórgia (das Rosas 2003), na Ucrânia (Laranja, 2004 e depois 2014) e no Quirguistão (2005, das Tulipas), voltadas a desestabilizar governos em favor de outros anti-russos. Como a história não é dada a coincidências, trata-se de recriar uma política de contenção, tal como no período soviético, para lidar com uma Rússia cada vez mais assertiva no sistema internacional sob liderança do Putin é nesse contexto que se somam as intervenções via embargos sanções, cerco e vilanizações, como Venezuela, Rússia, Irã e Coreia do Norte. 
Terceiro, a ocorrência dos golpes constitucionais ocorridos em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). Ao invés dos tradicionais dos golpes militares que amputam as prerrogativas institucionais por meio da força física, os golpes constitucionais preservam o efeito-legalidade das instituições e suas regras; subvertem a ordem destituída mantendo verniz de legitimidade (SANTOS, 2017, p. 12-6) – sem contar a desestabilização dos regimes de Argentina, Bolívia e Venezuela. Para emoldurar as novas formas de intervencionismo, é importante destacar conceitos como 'responsabilidade de proteger' ou 'intervenções humanitárias', como ilustra o caso Líbio (PAUTASSO; AZEREDO, 2011). 
Enfim, enquanto setores políticos diversos insistem em apagar este período histórico, permanece o desafio de compreender as lições e desafios dessa complexa experiência com objetividade e depurado do frenesi anti-comunista (VISENTINI, 2017). Além das experiências passadas, é imperativo compreender as transformações dos países que ainda se reivindicam socialistas. Nesse sentido, o colapso da União Soviética e do “socialismo real” deve ser compreendido como uma derrota que representou apenas um importante primeiro aprendizado, o primeiro capítulo de longo aprendizado (AMIN, 2010, p. 35).  

Considerações finais

Se foi possível deixar claro como o entrelaçamento entre neoliberalismo e intervencionismo faz retomar o neocolonialismo, não está nítido o quanto os setores mais consequentes da esquerda estão conseguindo ler a dinâmica internacional nesses termos. Diante de um cenário complexo, não parece haver saída senão através de um projeto nacional de desenvolvimento. Não há política anti-imperialista senão com fortalecimento da soberania. Não há desenvolvimento senão numa economia nacional integrada. Não há democratização e empoderamento dos segmentos populares à margem das instituições nacionais de Estado. Não há políticas públicas de redistribuição e reconhecimento sem os recursos que competem a um dado país. Em suma, ou a questão nacional articula a unidade na diversidade. 
Embora tem sido feito esforços importantes para compreender os enigmas do “socialismo real” (FERNANDES, 2000), frequentemente correntes de esquerda não-comunistas construíram suas trajetórias tecendo críticas – pro vezes unilaterais e não matizadas – a tais experiências lideradas pela União Soviética. Como dizia Mao Tsé-tung, a prática é o critério da verdade; se o “socialismo real” teve seus erros, a experiência de décadas e as vitórias não foram poucas nem objeto de interesse. Aos críticos, cabe olhar no retrovisor para fazer o balanço de suas próprias experiências de modo a serem extraídas as lições e comparações. De um lado, os autointitulados críticos 'mais a esquerda' estão à procura de suas primeiras experiências – revelando algum descompasso das ideias com a realidade. De outro, a “esquerda democrática” liderou governos de inspiração socialista na Europa, de Mitterrand na França ao Syriza na Grécia, e mais recentemente na América Latina, sem nem de longe representar o nível de ruptura sistêmica representado pela Revolução Russa. 

Referências 

AMIN, Samir. A via de desenvolvimento de orientação socialista. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010. 
BANDEIRA, Luiz. A Segunda Guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.  
___________. A desordem mundial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2016.
BENSAADA, Ahmed. Arabesque. Bruxelles: Investig'Action, 2015. 
FERNANDES, Luís. O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
HASSAN, Mohamed. Jihad made in USA. Bruxelles: Investig'Action, 2014.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
KEERAN, Roger; KENNY, Thomas. O socialismo traído. Lisboa: Avante, 2008. 
LOSURDO, Domenico. Guerra e Revolução. São Paulo: Boitempo, 2017. 
__________. A esquerda ausente. São Paulo: Anita Garibaldi, 2016.    
__________. Marx e o balanço histórico do século XX. São Paulo: Anita Garibaldi, 2015.
___________. A linguagem do Império. São Paulo: Boitempo, 2010.
PAUTASSO, Diego. Da política de contenção à reemergência. In: Revista Austral. Vol. 3, nº 6, 2014, pp. 73-94.
__________.; AZEREDO, Rafael. Expansão dos Estados Unidos: o caso da Líbia. In. Tensões Mundiais. vol. 7, 2011, pp. 169-192.
PRIESTLAND, David. A bandeira vermelha. São Paulo: Leya, 2012.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
PITILLO, João. Aço vermelho: os segredos da vitória soviética na Segunda Guerra. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
SANTOS, Wanderley. A democracia impedida. São Paulo: FGV, 2017. 
VISENTINI, Paulo. Os paradoxos da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017.

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