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Quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Texto sobre a falta de plano de combate à COVID-19 teve grande repercussão nacional.

No último sábado, 13 de fevereiro, a revista The Lancet, uma das mais conceituadas publicações científicas do mundo, publicou um texto assinado pela pesquisadora e professora do PPG em Enfermagem e do PPG da Educação da UFRGS, Cristianne Famer Rocha, acompanhada de outros cinco pesquisadores brasileiros, que repercutiu em diversos veículos de mídia. Intitulado “COVID-19 in Brazil: far beyond biopolitics” (COVID-19 no Brasil: muito além da biopolítica, em tradução própria), o texto propõe uma reflexão sobre as estratégias políticas na condução (ou não-condução) do enfrentamento da COVID-19 no Brasil. 

Segundo a professora Cristianne, o artigo é uma resposta ao editor da revista, Richard Horton, que, no dia 31 de outubro de 2020, publicou um editorial no qual indica que o conceito de biopolítica, de Michel Foucault, seria útil e adequado para se compreender a COVID-19 no mundo. Entretanto, para os autores, esse conceito se aplica em muitos países (sobretudo os ricos), menos ao Brasil, onde as políticas governamentais estão mais relacionadas à Necropolítica (política de morte), conceito apresentado pelo teórico camaronês Achille Mbembe. 

Para sustentar a afirmação, o artigo enumera uma série de ações equivocadas adotadas pelo governo federal com relação à pandemia: tentativa frustrada de privatização da atenção básica, ausência de um plano de resposta nacional completo, falhas logísticas graves na campanha de vacinação e forte negacionismo científico na alta administração do governo. O artigo, frisa a professora Cristianne, foi enviado antes do colapso no sistema de saúde de Manaus/Amazonas, noticiado no início do ano de 2021. 

Repercussão nacional

Mesmo tendo sido publicado fora do país, o artigo da revista The Lancet chamou a atenção da mídia brasileira e foi citado pelo colunista Lauro Jardim (O Globo), portal Yahoo, Brasil247, revista Forum, entre outros.

“Eu vejo a repercussão na mídia nacional com bons olhos por vários motivos. Primeiro, em função da importância da revista (The Lancet) no cenário internacional. A Lancet tem se preocupado muito com a Covid-19. É um dos periódicos internacionais que mais publica a respeito do tema, tanto pela urgência da pandemia quanto por sua linha editorial”, afirma a pesquisadora da UFRGS, e associada da ADUFRGS, citando artigos publicados pela revista, nos últimos tempos, especialmente sobre as ações do governo Bolsonaro em resposta à pandemia. 

“De certa forma, o que a gente vê nessa repercussão é uma grande preocupação nacional a respeito do que nós estamos vivendo. Isso é visível. E quem lê periódicos de fora do Brasil nota que muita gente está preocupada porque vê um país de importância econômica e sanitária internacional (até pela tradição que temos na área da Saúde Pública/Coletiva, com a construção de um dos maiores sistemas públicos de saúde – o Sistema Único de Saúde, SUS) que está tendo uma condução (da pandemia) questionável”, destaca Cristianne.

Como problemas na condução, além do que foi citado no artigo, a professora inclui a falta de informações sobre a pandemia, que levou veículos de imprensa do Brasil a criarem um consórcio para obter e divulgar os dados sobre o número de mortos, infectados, vacinados, etc. “Infelizmente, por mais absurda que pareça essa situação, vivemos um estado de letargia com essa calamidade no Brasil. E não se trata apenas de uma calamidade sanitária. É uma calamidade decorrente de decisões econômicas, políticas, culturais que estão produzindo enormes dificuldades na sociedade”, pontua Cristianne. 

Perspectivas

A professora Cristianne Rocha, junto ao Grupo de Estudos em Promoção da Saúde (GEPS/UFRGS), que ela lidera, está trabalhando em um novo artigo, ampliando o tema, que será submetido à outra publicação. 

O texto deverá tratar de questões como a ausência de um projeto de combate à pandemia; o investimento em tratamento precoce não-eficaz; a dificuldade de aplicar, controlar e distribuir o auxílio emergencial (suas descontinuidades e valores), além de novas discussões, como o fim da estabilidade do funcionalismo público [PEC 32/20 que altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa], que vai tirar do servidor a autonomia técnica; a inexistência de vacinas (produção e distribuição); o baixo financiamento de pesquisas e a destruição de um de nossos patrimônios socioculturais, que são as universidades públicas brasileiras, conforme aponta a professora. “Tem um conjunto de medidas econômicas restritivas que fortalecem o nosso argumento de que não vivemos em um estado biopolítico, mas necropolítico”, reforça.

Em relação às perspectivas de futuro do Brasil, diante da situação apontada pelos pesquisadores na condução de políticas públicas, a professora Cristianne revela que tem “medo de pensar, pois cada dia somos surpreendidos por ‘novidades’ que mais nos entristecem do que nos permitem sonhar com dias ou mundos melhores”. “Afinal”, diz a pesquisadora, “para quem estuda e busca analisar a realidade, a partir de diferentes perspectivas, é muito desanimador ver as consequências de inúmeras ações - cotidianas e estrategicamente organizadas - que menos constroem e mais destroem”.

Leia o artigo em tradução (livre e revisada pela autora):

COVID-19 no Brasil: muito além da biopolítica

Rafael Dall'Alba; Cristianne Famer Rocha; Roberta de Pinho Silveira; Liciane da Silva Costa Dresch; Luciana Araújo Vieira; Marco André Germanò
Publicado: 13 de fevereiro de 2021 - DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)00202-6

Richard Horton1 destacou a importância da biopolítica de Foucault como conceito para a compreensão do COVID-19. Ao elogiarmos seu comentário, acrescentaríamos que, em países como o Brasil, COVID-19 não é apenas sobre política da vida, mas também sobre política da morte.
Em meio a uma crise que não é apenas econômica, mas também política e ética, o Brasil tem se destacado por suas desastrosas ações governamentais na batalha contra a COVID-19: a tentativa frustrada de privatizar a atenção básica durante a pandemia, a ausência de um plano de resposta nacional completo, falhas logísticas graves na campanha de vacinação e o forte negacionismo científico na alta administração do governo.

Necropolítica de Achille Mbembe explica o que está acontecendo no Brasil.2 A ideia de necropolítica, que descreve como as condições de risco, doença e morte operam seletivamente em favor das políticas econômicas neoliberais, reflete as narrativas que afetaram predominantemente as populações pobres, negras e indígenas.3

Na periferia do mundo, a COVID-19 ampliou especialmente as consequências deletérias das políticas de austeridade.4 Enquanto os EUA, o Reino Unido e outros países aumentaram os gastos sociais em resposta à sindemia,5 o governo brasileiro optou por fortalecer as políticas econômicas que impossibilitaram grande parte da população de se isolar adequadamente do contato físico - 40% da força de trabalho brasileira está empregada no setor informal. No Brasil, as políticas monetárias direcionadas ao setor financeiro somaram cerca de US $ 230 bilhões,6 enquanto que as iniciativas fiscais voltadas para os impactos sociais da pandemia receberam menos da metade dessa quantia.7

Decidir seletivamente quem deve pagar pelos impactos da pandemia, forçando os pobres a escolher entre a fome ou a contaminação em estado de morto-vivo, foi naturalizado sob o argumento de sustentar a economia. O "E daí?" Do presidente Jair Bolsonaro, em resposta ao número crescente de casos COVID-198 aponta para as sistemáticas políticas implementadas durante sua presidência para enfraquecer as instituições, criando um cenário diferente e muito mais dramático do que o controle biopolítico. No Brasil, a fragilidade da administração pública tem sido incapaz de combater tanto a crise socioeconômica quanto a sanitária, deixando um rastro de problemas como fome, violência e doença, “subjugando a vida ao poder da morte”.2 Assim, a resposta à pandemia do Brasil não pode ser avaliada apenas pelas lentes biopolíticas.

A comunidade sanitária internacional, além de ter o papel de questionar o protecionismo econômico em vista da preservação da vida, deve ampliar sua análise da sindemia de COVID-19 para entender o que está acontecendo nas regiões menos desenvolvidas, em particular, para descolonizar o conhecimento e apreender de forma mais ampla sobre as particularidades geopolíticas e territoriais. Com mais de 227 500 vidas perdidas na COVID-19, até 4 de fevereiro de 2021, podemos dizer que a necropolítica está, ironicamente, viva no Brasil.

Referências
1 Horton R. Offline: COVID-19—a crisis of power. Lancet 2020; 396: 1383. 
2 Mbembe A. Necropolitics. Durham, NC: Duke University Press Books, 2019. 
3 Instituto Pólis. Raça e Covid no município de São Paulo. July, 2020. https://polis.org.br/ estudos/raca-e-covid-no-msp/ (accessed Jan 14, 2021). 
4 Doniec K, Dall’Alba R, King L. Austerity threatens universal health coverage in Brazil. Lancet 2016; 388: 867–68. 
5 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396: 874. 
6 Governo do Brasil. Banco Central anuncia conjunto de medidas que liberam R$ 1,2 trilhão para a economia. March 23, 2020. https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2020/03/banco-central-anuncia-conjunto-de-medidas-que-liberam-r-1-2-trilhao-para-a-economia (accessed Feb 3, 2021). 
7 Senado Federal. Agência Senado Executivo gastou 77,7% do orçamento previsto para combate a pandemia. Oct 23, 2020. https://www12.senado.leg.br/noticias/ materias/2020/10/23/executivo-gastou-77-7- do-orcamento-previsto-para-combate-a-pandemia (accessed Feb 3, 2021). 
8 Garcia G, Henrique Gomes P, Viana H. ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; ‘Sou Messias, mas não faço milagre’. April 28, 2020. https://g1.globo.com/politica/ noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-dizbolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-nobrasil.ghtm (accessed Feb 3, 2021).

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