Revolução Russa e a luta por emancipação
A Revolução Russa foi um dos acontecimentos mais importantes do século XX. Ela traçou um fio vermelho que percorreu mais de sete décadas da nossa história e alimentou em milhões de pessoas de todos os continentes a esperança de um mundo melhor. Representou uma virada histórica, abrindo uma nova etapa nas lutas emancipatórias. No entanto, a mídia monopolista continuará apresentando-a como um acontecimento nefasto, um dos piores que a humanidade presenciou. Apresentará as organizações e países que se referenciam nela como totalitários, pouco se diferenciando do nazismo.
A burguesia e seus ideólogos sempre procuraram demonstrar que todas as conquistas econômicas, políticas e sociais alcançadas no século passado estavam em vias de serem conseguidas de maneira mais agradável e menos conflituosa através do capitalismo liberal. A Revolução Russa, portanto, teria posto um fim ao desenvolvimento natural e pacífico, impondo um desvio de rota sangrento que atrasou o caminho da humanidade.
Como era o mundo antes da Revolução Russa, que teria sido violentado pelas baionetas dos bolcheviques naquele outubro de 1917? Em primeiro lugar, era um mundo em guerra. Estávamos em meio a uma das maiores hecatombes vividas até então. Refiro-me à Primeira Grande Guerra Mundial, que durou 4 anos e na qual mais de 10 milhões de pessoas morreram. Uma tragédia que a esquerda socialista – especialmente os bolcheviques – fizeram tudo para impedir.
Ironicamente, aqueles liberais e socialistas reformistas, que acusavam os bolcheviques de apologistas de métodos violentos, e que se diziam defensores de saídas pacíficas para os dilemas do capitalismo, foram os primeiros a apoiarem a guerra imperialista planetária, insuflando o ódio entre os povos e santificando o massacre mútuo em nome da segurança e da honra nacionais.
Voltemos ao mundo de antes da Revolução Russa. Naquela época, a grande maioria dos países da África e Ásia era dominada por potências capitalistas. Foi justamente o bolchevismo vitorioso que conclamou os povos coloniais a lutarem por sua independência. Logo depois da morte de Lênin, em 1924, um dirigente da URSS escreveu: “a questão nacional, antes de Lênin, se reduzia apenas a um grupo restrito de problemas, que diziam respeito, no máximo, às nações 'civilizadas'. Irlandeses, húngaros, poloneses, finlandeses, sérvios e algumas outras poucas nacionalidades da Europa: este era o grupo de povos (...) por cujo destino se interessavam os heróis da II Internacional. Dezenas e centenas de milhões de seres humanos pertencentes aos povos da Ásia e da África, submetidos ao jugo nacional na sua forma mais brutal e mais feroz, não eram levados em consideração. Não eram colocados num mesmo plano brancos e negros, 'civilizados' e 'não civilizados' (...). O leninismo desmascarou esta disparidade escandalosa; rompeu a barreira que separava brancos e negros, europeus e asiáticos”.
Essa mesma percepção (da revolução russa como propulsora da libertação dos povos coloniais e não brancos) teve as classes dominantes e seus ideólogos no centro do Império. Vejamos um trecho da obra de Lothrop Stoddard – “A maré montante dos homens de cor contra a supremacia branca mundial” -, publicado em 1920 e que foi um dos best-sellers norte-americanos daqueles anos: “O bolchevismo é um perigo, de certa forma, sem precedentes na história do mundo. Não é meramente uma guerra contra um sistema social, é uma guerra contra a nossa civilização. (...). O bolchevismo (...) não só fomenta a revolução social dentro do próprio mundo branco, mas também procura alistar as raças coloridas em seu grande assalto à civilização (...). Em todos os países do globo, na Ásia, na África, na América Latina e nos Estados Unidos, os agitadores bolcheviques sussurram aos ouvidos de homens de cor descontentes o seu evangelho de ódio e vingança. (...) O bolchevismo revela-se, assim, como o inimigo da civilização e da raça. É o renegado, o traidor dentro dos nossos próprios portões (...). Por isso, deve ser esmagado com botas de ferro, não importa o custo. Se isso significa mais guerra, que signifique mais guerra.”
Podemos medir os efeitos “benéficos” da colonização da Europa ocidental e cristã sobre a África numa cifra apresentada por Hannah Arendt. Escreveu ela: “a Bélgica reduziu a população nativa (do Congo) de 20-40 milhões em 1890 para 8 milhões em 1911”. Relembremos também o massacre do povo herero nas áreas africanas colonizadas pelo imperialismo alemão, ocorrido entre 1904 e 1907. Aquele foi considerado o primeiro genocídio do século XX. Ali, naquela região, nasceram os primeiros campos de extermínio. Por isso, alguns historiadores afirmam que o nazismo não foi nada mais que a aplicação, na Europa, de métodos de repressão e controle que já eram utilizados pelos colonizadores ocidentais na África e Ásia.
Recentemente, na década de 1990, um liberal respeitável – e defensor das “sociedades abertas” – Karl Popper, afirmou que a Europa tinha libertado as colônias cedo demais, e isso teria sido como abandonar um orfanato nas mãos das próprias crianças. A analogia entre os povos coloniais e crianças (ingênuas e despreparadas) tem uma longa história dentro da tradição liberal. Desde o fim da URSS, estas ideias preconceituosas (neocoloniais) ganharam força no interior do mundo capitalista. Para os liberais, as atuais guerras e os genocídios africanos seriam provas definitivas da incapacidade desses povos de se autogovernarem. Apenas esquecem de dizer quais são os bárbaros que financiam estes conflitos regionais e os abastecem de poderoso material bélico.
Hoje não é possível falar em democracia sem o sufrágio das mulheres, que representam metade da população do planeta. Mas, a exclusão política das mulheres era considerada algo natural nas chamadas democracias ocidentais quando eclodiu a Revolução Russa. A luta das sufragistas inglesas naqueles anos – e que teve o apoio do movimento socialista – é bastante conhecida. Suas líderes, Emmeline e Sylvia Pankhurst, perderam parte do seu tempo de militância feminista visitando os cárceres de sua Majestade. O tratamento dado às sufragistas nas demais nações ditas democráticas não foi muito diferente.
O primeiro grande país no qual as mulheres conquistaram o direito ao voto foi, justamente, a Rússia revolucionária, ainda em fevereiro de 1917. O segundo foi a Alemanha, graças à revolução de 1918. Só depois este direito se estendeu aos grandes países liberais como EUA, Inglaterra e França. Neste último – e na Itália – as mulheres adquiriram o direito ao voto somente após a libertação capitaneada pelos comunistas em 1945. Internamente, a Revolução Russa criou espaços inéditos à ascensão das mulheres – abrindo as portas das escolas técnicas e universidades. Também favoreceu o ingresso no mercado de trabalho e nos serviços públicos. O efeito libertador foi ainda maior para aquelas que viviam na região asiática, onde a opressão cultural e religiosa era bem maior.
A ideologia racista – amplamente dominante nos países capitalistas – sofreu um rude golpe com a revolução. No começo do século XX, nos Estados Unidos, os negros eram linchados pelos motivos mais banais – às vezes por olhar de maneira considerada desrespeitosa para uma mulher branca. Entre 1901 e 1914, foram computados mais de mil casos de linchamentos. O auge deles ocorreu no imediato pós-guerra, entre 1918 e 1920. Estes atos bárbaros, geralmente, transformavam-se em cerimônias festivas envolvendo toda a comunidade branca. Era comum que os corpos carbonizados e enforcados das vítimas negras fossem fotografados e se transformassem em cartões postais.
Podemos, de maneira polêmica, afirmar que o sul dos Estados Unidos era uma espécie de prefiguração do que seria a Alemanha nazista. Foram as lutas dos negros e o fantasma do comunismo que forçaram os legisladores estadunidenses a “apressarem” a aprovação da legislação dos direitos civis. Em dezembro de 1952, o Secretário de Justiça enviou uma carta à Corte Suprema apelando para que votasse pela inconstitucionalidade da segregação nas escolas públicas. Nesta carta dizia: “A discriminação racial leva água à propaganda comunista e suscita dúvidas entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Levaria mais de 10 anos para que os negros sulinos adquirissem pleno direito ao voto.
Também em relação ao antisemitismo os Estados Unidos serviram de referência ao movimento comandado por Hitler na Alemanha. Os nazistas foram leitores e admiradores de O Judeu Internacional, uma coletânea de artigos escritos por Henry Ford. Segundo um jornalista do New York Times, em 1922, o candidato a Füher tinha uma foto do industrial estadunidense colocada na parede do seu escritório em Munique. No ano seguinte, Hitler chegou a declarar: “Nós consideramos Henry Ford como o líder do movimento fascista crescente na América. Admiramos particularmente sua política anti-judaica, que é a mesma dos fascistas bávaros”.
Ainda tratando do anti-semitismo, voltemos à Rússia antes da revolução: foi ali que se realizaram os maiores pogroms contra os judeus antes da ascensão nazista. Em 1905 foi editado, em grande escala, o panfleto Protocolos dos Sábios de Sião, obra apócrifa escrita por agentes da polícia czarista. Ele narrava uma mirabolante conspiração judaica para dominar o mundo. O mesmo Ford tratou de difundi-lo nos EUA e a gráfica real imprimiu milhares de exemplares na Inglaterra. Mais um fato esquecido pela historiografia liberal e antitotalitária.
Quando começou a guerra civil na Rússia, em 1918, as tropas brancas (contrarrevolucionárias), com apoio britânico, divulgaram milhares de cópias de versões mais populares e mais sórdidas dos Protocolos. O Ocidente capitalista tentava provar que a Revolução Russa não passava de um complô judaico-comunista visando ao domínio do planeta. Nas regiões “libertadas” pelos brancos, sucederam grandes pogroms contra judeus e comunistas. Entre 1918 e 1920, ocorreram 2 mil deles, que custaram a vida de cerca de 75 mil pessoas e o êxodo de mais de meio milhão.
Lênin, em 1919, em meio à guerra civil, buscou denunciar a barbárie liberal-czarista: “O ódio contra os judeus se mantém firmemente apenas onde o jugo dos proprietários de terras e dos capitalistas afundou os operários nas trevas e na ignorância. Apenas pessoas completamente ignorantes, completamente embrutecidas, podem acreditar nas calúnias difundias contra os judeus. São resíduos da Idade Média.” Coube aos bolcheviques totalitários a proteção da população judaica ameaçada pelas tropas pró-ocidentais.
Alguns anos depois, no holocausto promovido pelos nazistas, cerca de 6 milhões de judeus foram exterminados. No capitalismo dos monopólios, os métodos e a escala do extermínio judeu (e comunista) deixavam de ser artesanais, como nos tempos do czarismo, e passavam a ser industriais. Em 1941, Stalin afirmou: “Na sua essência, o regime de Hitler é uma cópia daquele regime reacionário que existiu na Rússia sob o czarismo. É notório que os hitleristas atropelam os direitos dos operários, os direitos dos intelectuais e os direitos do povo, assim como o regime czarista os atropelava, e ordenam pogroms medievais contra os judeus, como o regime czarista os ordenava. O partido hitlerista é um partido dos inimigos das liberdades democráticas, partido da reação medieval e dos pogroms tenebrosos”. O ditador soviético foi um dos primeiros dirigentes de uma nação a denunciar o holocausto promovido pelos nazistas contra os judeus na Europa.
Mesmo o Estado de Bem-Estar Social, nascido da Europa ocidental, é impossível ser pensado sem a existência do fantasma da revolução socialista. Os próprios neoliberais não se cansaram de bater nesta mesma tecla: os direitos sociais e a intervenção do Estado na Economia – típica do modelo keynesiano – eram uma contaminação perigosa do comunismo nas democracias liberais europeias. Assim também consideravam a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU, em 1948.
Para concluir, podemos dizer que grande parte do que foi conquistado pelos trabalhadores no século XX se deve à vitória da Revolução de Outubro. A derrocada do colonialismo, a ampliação da democracia e dos direitos sociais, o fim das discriminações mais odiosas que pesavam sobre as mulheres e os povos não brancos só podem ser plenamente entendidos com o pano de fundo da grande obra iniciada pelos trabalhadores russos, tendo à frente Lênin. Hoje, depois da derrocada do campo socialista dirigido pela União Soviética, muitas dessas conquistas civilizacionais se encontram ameaçadas.
Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi. Augusto foi um dos palestrantes do seminário “100 Anos da Revolução Russa”, realizado entre maio e junho em Porto Alegre.