Confira a entrevista da associada da ADUFRGS-Sindical, Dagmar Meyer, professora que atua na área de educação em saúde relacionada às discussões de gênero e sexualidade.
Por: Daiani Cerezer
Dando continuidade à série de entrevistas sobre o movimento internacional de conscientização das mulheres a respeito da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama e de colo do útero, o portal Adverso entrevistou a professora aposentada da Faculdade de Educação da UFRGS Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, graduada em Enfermagem pela PUC-SP (1979), doutora em Educação (1999) pela UFRGS e pós-doutorada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (2005). Atuou nos Programas de Pós-Graduação em Educação, em Enfermagem e Saúde Coletiva, nas Linhas de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero; e Educação e Cultura da Saúde.
Portal Adverso – Você considera que investir na prevenção e conhecer o próprio corpo é importante para as mulheres?
Dagmar Meyer - Conhecer o próprio corpo é uma das prerrogativas necessárias para que as mulheres desenvolvam a capacidade de decidir, de forma esclarecida, o que querem e o que fazer com o próprio corpo. As ideias de que “o nosso corpo nos pertence” e que o “pessoal é político” são as bandeiras centrais do feminismo desde os anos 60 do século passado, então, sim, conhecer o próprio corpo é importante, mas não resolve todas as questões que se desdobram disso.
Há uma diferença significativa pensar em prevenção de doenças e promoção da saúde do ponto de vista mais amplo, da saúde coletiva, e também, do ponto de vista de uma abordagem mais individualista que foca o indivíduo e, nesse sentido, interpela esse indivíduo para que ele assuma determinadas atitudes e se responsabilize por ações e por cuidados de prevenção ou de promoção da sua própria saúde. Nessa direção, e tensionando essa diferença, talvez pudéssemos nos perguntar se, em determinadas circunstâncias, o que fazemos para prevenir doenças poderia impactar a promoção de nossa saúde. Mas essa é uma questão complexa.
No que diz respeito à Campanha do Outubro Rosa, o câncer de mama é, entre os tipos de câncer, o que mais acomete e que mais mata mulheres no Brasil, seguido pelo câncer de cólon e de reto e, em terceiro lugar, está o câncer de colo de útero, segundo dados relativos a 2018 divulgados pelo INCA. Então, há dois tipos de câncer que acometem as mulheres em maior número, que se inscrevem na área ginecológica. Portanto, ter a informação de que fazer a prevenção com idas regulares aos ginecologistas e os exames que estão associados a isso é importante. Investir na ideia da prevenção é importante. Mas, de novo, será que é suficiente?
Investir na divulgação de informações e reforçar que a prevenção salva vidas, em uma Campanha como esta, é importante, mas está longe de ser suficiente. Se olharmos para essa problemática utilizando, por exemplo, o quadro conceitual da vulnerabilidade, com o qual trabalho, podemos dizer que as mulheres constituem um grupo vulnerável ao câncer de mama no Brasil e no mundo. Acontece que quando pensamos do ponto de vista dessa grade analítica da vulnerabilidade, vamos pensá-la em três dimensões distintas, porém estreitamente articuladas: vulnerabilidades que são individuais, por exemplo, aquelas relacionadas a fatores genéticos, ou ao consumo de cigarros e álcool; que estão colocados no âmbito de características específicas ou se vinculam a hábitos e comportamentos de risco que indivíduos assumem individualmente por falta de informação ou apesar dela. Assim, ter acesso à informação é importante, mas também precisa haver adesão e, para além de querer, é preciso ter condições para operacionalizar esse conhecimento tanto no que diz respeito à prevenção de doenças quanto da promoção da saúde.
Disso decorre a segunda dimensão da vulnerabilidade que precisamos analisar, a vulnerabilidade social, que tem a ver com as condições mais gerais de vida, a pobreza, a falta de emprego, a falta de saneamento básico, com moradias precárias etc. Tem a ver com direitos que, no Brasil, dizem respeito ao direito à Saúde, em seu sentido amplo. E isso significa o investimento em políticas públicas de saúde que garantam o acesso a bens e a permanência em serviços e redes de cuidados que permitam que os diferentes segmentos da população façam frente às suas vulnerabilidades individuais, entendendo-se também que escolhas informadas e responsáveis nem sempre coincidem com as prescrições que nos são feitas.
Um terceiro aspecto que analisamos é o componente que chamamos de vulnerabilidade programática. Ela é um desdobramento importante da vulnerabilidade social, mas diz respeito exatamente àquelas vulnerabilidades que emergem e/ou são mantidas e/ou aprofundadas pelas políticas e/ou pelas instituições que, de alguma forma, deveriam dar conta das vulnerabilidades sociais antes elencadas. Por exemplo: as consultas ginecológicas e as mamografias prescritas estão mesmo disponíveis nas redes de atenção básica? Os serviços de saúde funcionam em horários compatíveis com os horários das mulheres trabalhadoras? Como evitar o consumo de substâncias cancerígenas em um contexto em que a liberação de agrotóxicos tem sido ampliada? Então, pensar a questão do câncer de mama ou qualquer outra forma de adoecimento, do ponto de vista de ampliar e, ao mesmo tempo, tornar mais difícil essa ideia de que é importante que a gente se previna ou que haja promoção da saúde, envolve a gente pensar em todas essas dimensões, porque essa é uma rede complexa que vai fazer com que a prevenção e/ou promoção da saúde se aproxime ao máximo, dos resultados que esperamos desses investimentos.
PA - A partir dessas colocações, como a senhora avalia o Outubro Rosa?
DM - Logicamente, acho que é importante, mas essa abordagem das campanhas não dá conta de resolver esses problemas. Ela é importante porque dá visibilidade a uma problemática, faz com que se fale dela ao menos por um determinado tempo, e envolve diferentes entidades da sociedade civil e empresas, instituições e órgãos governamentais divulgando informações, promovendo eventos etc, e tudo isso é importante. No entanto, ao longo do ano, essa questão sai de cena e outras entram na pauta (câncer de próstata, por exemplo), e a gente não vê uma continuidade mais consistente e contínua em termos de investimento em políticas públicas, fortalecimento das redes de atenção e da oferta de serviços de saúde etc. Além disso, não há um único entendimento do que seja fazer uma prevenção adequada nesse caso. A Sociedade Brasileira de Mastologia, por exemplo, recomenda que se faça mamografia regularmente a partir dos 40 anos de idade uma vez por ano e o Ministério da Saúde recomenda que as mulheres façam mamografia a partir dos 50 anos a cada dois anos. Há um número crescente de estudos questionando a efetividade da própria mamografia e de seus resultados. Não vou entrar nessa seara porque essa não é minha área de estudos. Mas como mulheres, somos sujeito dessas discursividades que nem sempre convergem.
Campanhas de saúde como o Outubro Rosa acabam assumindo uma abordagem muito focada no indivíduo, ou seja, parte-se da ideia de que se eu informo o indivíduo, ele teve acesso a essa informação e, supostamente, adere se tiver vontade. Se não o fizer, passa a ser o responsável pelas consequências disso. Essa abordagem é bem simplista, e embora venha sendo extensivamente criticada, há décadas, segue repercutindo por aqui.
É essa a hora em que, para mim, pesa mais fazer uma análise de contexto político, econômico e social, ou seja, pensar em que contexto ou em que condições este indivíduo mulher está inserido e quais são as condições que ela tem, como mulher, de dar conta desse leque de ações que dizem que, se seguir as orientações protocolares (prática regular de exercícios, alimentação saudável, evitar fumar, evitar ingestão de álcool e evitar uso de hormônios sintéticos, por exemplo), irá prevenir o câncer de mama.
Então, é lógico que é importante que as mulheres se cuidem, mas é preciso estar atenta à realidade. Existem pesquisas mostrando que as mulheres são as maiores frequentadoras de serviços de saúde e elas os frequentam, na maior parte das vezes, porque são cuidadoras de seus familiares. É diferente, por exemplo, do caso da população masculina para a qual se fez uma política de atenção à saúde porque eles estão, de modo geral, ausentes do cotidiano dos serviços de saúde e que eles costumam frequentar apenas quando adoecem.
As mulheres estão nos serviços de saúde e podem ser muito sensibilizadas para cuidar de si, todos os dias, ao longo do ano, desde que as condições sociais e políticas para isso estejam dadas. Isso significa que eu seja contra campanhas como estas? De forma alguma: acho que elas nos oferecem muitas possibilidades para abrir, aprofundar, debater, ampliar e repensar essa e outras problemáticas que afetam nossas vidas de maneiras tão contundentes. Quem não conhece ou já não perdeu alguém próximo para o Câncer de Mama?