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Sábado, 20 de agosto de 2016

Em 2015, foram registradas 54 ocorrências classificadas como “casos de assédio envolvendo gênero e raça”.

A última década foi marcada por uma considerável ampliação do acesso de setores historicamente excluído ao Ensino Público Superior. Além da criação de dezoito universidades públicas federais, mais de um milhão de alunos foram contemplados com bolsas integrais e parciais do Programa Universidade para Todos (Prouni). Segundo o Ministério da Educação, somente em 2013, o Sistema de Seleção Unificado (Sisu) garantiu o ingresso em universidades para mais de cem mil jovens.

Mais estudantes, maior a diversidades e maior o risco de intolerância e preconceito. Diariamente, casos de racismo, xenofobia, homofobia, exigem ações institucionais de combate a todas as formas de discriminação. Foi com este propósito que a UFRGS lançou, no mês de maio, o Comitê contra a Intolerância e a Discriminação. O objetivo é promover a equidade, os direitos humanos e a cultura da paz no âmbito da universidade.

O coordenador do Comitê, Edilson Nabarro, explica que “a situação conjuntural do Brasil, e o agravamento do pensamento conservador, está contaminando o espaço das universidades. Há uma disputa entre posições políticas ideológicas vinculadas com uma agenda de Direitos Humanos”.

O Comitê, que tem caráter institucional, é permanente e vai acompanhar, monitorar e mediar, através de ações preventivas e pedagógicas, a resolução dos casos de intolerância. De acordo com Nabarro, ele é composto por servidores técnicos, docentes e alunos com relativa experiência e sensibilidade no trato deste tema.

Somente em 2015, foram registradas 54 ocorrências classificadas como “casos de assédio envolvendo gênero e raça”. Considerando que são denúncias formais, oriundas de servidores, alunos e anônimos, o número é expressivo. Nabarro acredita que, “dando visibilidade a este tema, na academia e na sociedade, a instituição assume responsabilidades sobre os atos que ocorrem no seu meio e que precisam ser enfrentados.”

Para além da criação do Comitê, a UFRGS vem atuando em diferentes frentes a fim de assegurar que as políticas públicas de ações afirmativas, no setor da educação, estejam em consonância com as diretrizes de combate à discriminação racial, étnica, de gênero e de orientação sexual. Além de debates, estão sendo realizadas pesquisas para aprofundar o conhecimento dos casos de intolerância e discriminação praticados no meio acadêmico. 

A professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, Natalia Pietra Méndez, investiga temas relacionados a gênero, estudos feministas, história das mulheres, entre outros. Como palestrante, ela participou do Ciclo Conversas Contra a Intolerância e Discriminação, uma das atividades do Comitê, que ocorreu em final de junho, no Campus do Vale.  

Para Natalia, “a cultura do estupro se manifesta em diferentes sociedades e pode ser identificada com uma série de práticas e discursos recorrentes, que transformam o corpo feminino em um mero objeto a ser tomado, conquistado e usufruído pelo sujeito masculino”.

Os casos de assédio sexual são cada vez mais numerosos e ocorrem em diversas instituições de ensino, segundo a professora. “Casos de estupro já se tornaram públicos em universidades brasileiras, praticados por estudantes de cursos onde o abuso sexual é parte de certos rituais de iniciação das calouras. Na maioria dos casos, os abusadores são professores ou colegas do sexo masculino e as vítimas, estudantes mulheres. A prática do assédio, a banalização e naturalização de qualquer forma de violência contra mulheres e contra a população LGBT fomentam a cultura do estupro”, afirmou.

É preciso combatê-la e, para isso, Natalia diz que, “ao promover atividades que permitam discutir o tema, a UFRGS já está cumprindo um papel relevante, porque é fundamental que haja um comprometimento institucional no combate à violência. O Comitê, em conjunto com a comunidade universitária, poderá ser eficaz no acolhimento e acompanhamento de denúncias.” 

O Comitê contra a Intolerância também pode “contribuir para que avancemos no debate sobre relações de gênero e sexualidade, considerando a importância destes temas para formação profissional em diferentes áreas, principalmente aquelas relacionadas com saúde, educação e direito”, defende Natália. Na opinião dela, os profissionais nem sempre estão preparados para agir, quando se deparam com uma situação de violência sexual. Vale ressaltar que dados produzidos a partir de prontuários do Sistema Único de Saúde (SUS) demonstram que a maioria dos estupros é praticada por homens, que possuem vínculos com suas vítimas, especialmente quando estas são crianças e adolescentes. 

As universidades têm sido palco de uma onda crescente de ocorrências, que envolvem discriminação relacionada à violência sexista. E não é novidade que essas situações nem sempre chegam a ser denunciadas. Muitas mulheres não registram situações de violência, porque elas têm dúvidas se receberão o apoio que necessitam da instituição, pelo medo da exposição e, também, de represálias. “São mulheres que estão na universidade para construir suas trajetórias profissionais e receiam que seu envolvimento nestes casos possa influenciar negativamente em sua imagem', diz Natalia, lembrando que “estes pensamentos são comuns entre as mulheres, justamente porque ainda vivemos uma cultura que as responsabiliza pela violência sofrida”.

Para exemplificar um caso de discriminação relacionada ao gênero, Andressa Klemberg, 20 anos, 6º semestre de Gestão em Saúde na UFCSPA, conta que, quando fazia o Curso Técnico em Administração, no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), sofreu preconceito porque decidiu fazer um trabalho sobre uma empresa automobilística, tema escolhido por ser apaixonada por carros.

Para a estudante, “o preconceito maior sempre foi e é pela questão de gênero, porque, no caso do meu estudo, carro não é assunto para mulher. Há uma tentativa de descrédito quando uma garota de 18 anos resolve mostrar que sabe, gosta e pesquisou a fundo sobre o tema”.

Andressa conta que professores, colegas e visitantes de feiras das quais participou, muitas vezes, queriam mostrar que entenderiam mais do assunto do que ela, e faziam testes para provar que ela não sabia mais do que o que estava escrito no pôster. “Muitas vezes, as pessoas me disseram que estavam surpresas, e que não entendiam os motivos do meu interesse no assunto, sugeriram que eu abordasse outros temas e diziam, claramente, que aquele era um assunto masculino.”

Andressa considera que os padrões de exclusão são constantemente repetidos, de modo socialmente aceito como "normal", fazendo com que os interesses femininos por determinados assuntos sejam refreados. “O resultado é que somente com muita vontade e perseverança uma mulher se mantém nas frentes de pesquisa, trabalho e atuação que realmente deseja”.

O professor de Administração do IFRS – Campus Porto Alegre, Clúvio Buenno Soares Terceiro, lembra que “a universidade não está separada da sociedade e, no seu interior, a cultura do estupro se manifesta de diversas formas”.  Os trotes, que são legitimados, “simplesmente porque fazem parte do rito de ingresso na universidade”, colocam as alunas calouras em situações constrangedoras e quem não participa muitas vezes é excluído do convívio com os colegas. Esta é uma situação na qual o professor identifica “laços estreitos entre o machismo e a cultura do estupro”.

Clúvio acredita que o combate à cultura do estupro passa pelo debate sobre todos os transtornos gerados por este tipo de violência. “Entendo que depende muito mais dos homens do que das mulheres, que precisam aprender que ninguém possui o direito de violar o corpo de outro.” Por outro lado, o professor adverte que tratar o agressor como “um monstro” é tão equivocado quanto acreditar que existem super-heróis. Esse “monstro”, explica, “é uma pessoa, normalmente um homem, fruto de seu tempo e de uma sociedade que tolera o tratamento violento contra suas vítimas. Isso não atenua o delito, mas pode nos ajudar a compreender melhor o que leva alguém a cometer esse crime terrível”.

Patrik de Souza Rocha, que hoje cursa o sétimo semestre de Licenciatura em Ciências da Natureza no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Campus Porto Alegre), lembra que o início não foi fácil. Cotista, ele e outros colegas na mesma situação eram alvo de piadas preconceituosas, que fizeram alguns estudantes desistirem do curso. E, como agravante, Patrick sofria discriminação relacionada à sua orientação sexual, pois é homossexual. “Vivemos numa sociedade em que, infelizmente, tudo que foge do comum é considerado anormal. Obviamente, isso acaba avançando para espaços onde se produz conhecimento e onde as pessoas andam externando a intolerância de uma forma assustadora”, lamenta.

Para Patrick, o diálogo é a melhor maneira de combater a intolerância. Ele acredita, porém, que muitos temas relacionados ao preconceito ainda são tabus e acabam sendo varridos para baixo do tapete. “Acho que precisamos de fóruns para discutir temas como escravidão, LGBT, gênero e religião, em todas as áreas do conhecimento, afinal todas lidam com pessoas e pessoas não são iguais umas às outras.”

Para o estudante, o preconceito relacionado à sexualidade é pior ainda, “é perigoso, porque pessoas morrem em consequência disso. É inadmissível que, em pleno século 21, tenhamos mortes ou vítimas de ataques físicos ou psicológicos, causados por questões tão intrínsecas como a orientação sexual, a religião ou por características como a cor de pele”, desabafa.


Texto e foto: Daiani Cerezer
ADverso/Edição 221 - Julho/Agosto - 2016

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